Aécio Gomes de Matos
Fonte:
MATOS, Aécio Gomes de. Promessas e desencantos do desenvolvimento. In GOMES, Eldenor (Org.). Da mobilização às mudanças sociais. São Paulo: Polis; Campinas, SP: CERES – Centro de Estudos Rurais, 2006
A declaração universal dos direitos humanos, considerada um dos grandes avanços das sociedades modernas, pouco significa para a maioria dos habitantes do planeta, submetidos a discriminações por raça, etnia, nacionalidade, idade, genro ou religião; vivendo sob padrões de vida subumanos com fome e toda espécie penúrias; expostos a conflitos e guerras; submetidos a regimes políticos autoritários ou democracias manipuladas por oligarquias. Resta saber onde fica a legitimidade dessa declaração tão valorizada por todos os se dizem democratas.
Enquanto a crônica situação dos países periféricos fica mais crítica, a crise do modelo neoliberal nos países desenvolvidos deita por terra os sonhos dos mais pobres terem acesso à sociedade de consumo. Todos estão impactados com os limites cada vez maiôs restritos das responsabilidades dos estados neoliberais que não reconhecem assistidos a socorrer, mas pessoas com diferentes capacidades sociais, que devem ser aproveitadas, socializando os direitos e as prestações, mas também as responsabilidades e os deveres. O que nesta lógica seria apenas econômico da incapacidade de financiamento das prestações do Estado do bem estar social, revela-se fundamentalmente político, inscrevendo as assimetrias na própria concepção do Estado e na sua tutela, sem obrigações de prover.
A exclusão social passa a ter um foco individual, de competências e capacidades de cada um, condicionada as posturas competitivas num suposto ambiente de igualdade e liberdade. Essa lógica de auto inclusão e de desresponsabilização do Estado se reflete de maneira mais perversa nos países periféricos. José de Souza Martins[1], considera que o conceito de inclusão e exclusão, teriam “o propósito claro de subinformar e mesmo desinformar”.
Numa visão simplista todos estariam mais ou menos incluídos; mais ou menos excluídos. Ou seja, pois sim, todos estariam incluídos, desde os mais ricos até o mais baixo segmento da renda, até o consumidor da quinta categoria social, empregado de salário mínimo ou mesmo o desempregado “vivendo de bicos” que compra cigarros, refrigerantes, tecidos, eletrodomésticos, tudo produzido por multinacionais em mercados globalizados. As capacidades de cada um determinam o seu nível de inclusão.
Fica, no entanto um ponto cego nessa lógica de inclusão. No Brasil somos todos iguais perante a lei que garante, por exemplo, o direito à saúde, à educação, aos serviços públicos, mas na prática, os mais pobres têm assistência médica precária, escolas de baixíssima qualidade, como cidadãos de segunda categoria. Com isso teriam menos chances no mercado de trabalho, na disputa pelas oportunidades sociais, no acesso ao ensino superior, na manutenção da saúde.
Tampouco a inclusão política que se expressa no direito ao voto parece corresponder à igualdade cidadã. Os mais pobres e desprovidos de organização coletiva constituem uma categoria inferior, com dificuldades de acesso às instâncias legais, sem palavra e sem voz no cenário institucional. Não obstante continuam votando em eleições manipuladas pelo poder econômico, pela propaganda e pelo clientelismo. Continuam legitimando o Estado que lhes deserda, em troca de migalhas.
O olhar institucional para a pobreza
Mas a questão que se coloca à luz dessas considerações vai além do caráter semântico ou conceitual. Questionam-se no fundo os modelos econômicos excludentes e a inviabilidade de reparação das injustiças sociais decorrentes. Na prática, as políticas de combate à pobreza, como promessas de mudança gradual, pedem paciência aos mais pobres, mas termina por reforçar a adesão aos modelos (políticos e econômicos) dominantes. Essas políticas fixam a idéia de que as desigualdades sociais são situações reversíveis e que a superação da pobreza resultaria na inclusão dos excluídos. As pessoas terminam acreditando que o acesso ao conhecimento técnico e racional através da educação e a capacitação dos excluídos, aportariam as competências necessárias ao empreendedorismo ou à qualificação ao mercado de trabalho.
È o enfoque individualista da filosofia liberal que desvia a atenção dos aspectos políticos da questão da exclusão para um viés meramente econômico e competitivo de combate à pobreza. Fixa-se a suposição de que a lógica de mercado e do crescimento econômico poderia responder simultaneamente pela regulação das assimetrias e pela inclusão social. O sistema liberal e suas políticas de combate à pobreza com a interferência mínima do Estado reforçam a denegação dos problemas incontornáveis de modelos econômicos concentradores de capacidades e de renda, onde está a origem e não a solução dos problemas.
Muitos documentos das Nações Unidas (PNUD, BIRD, CAPAL, UNESCO, FAO, FIDA) reconheçam que a questão da pobreza deveria ser abordada numa perspectiva mais ampla, para além da renda e do consumo insuficientes. São muitas as referências à privação de bem-estar, à falta de atendimento de necessidades básicas como educação, saúde, nutrição e moradia, insegurança e risco, assim como à falta de voz e de poder[2]. Mas tudo isso fica só no papel. As estratégias e os programas de desenvolvimento financiados por essas instituições terminam sempre se definindo pelo viés econômico com foco na geração de emprego e renda.
Na prática, no entanto, esse viés econômico é mais perverso ainda com relação aos programas sociais. Submetidos às orientações do Fundo Monetário Internacional e do Consenso de Washington, as diretrizes para o desenvolvimento dos paises periféricos privilegiam as políticas de equilíbrio fiscal em detrimento das prestações devidas pelos governos nacionais à suas populações. A obsessão pelo superávit primário que garante o pagamento de juros do endividamento do Estado se torna o ponto central das políticas nacionais de desenvolvimento, mesmo em paises como o Brasil onde se elege um governo à esquerda, originário e declarado representante das classes mais desfavorecidas.
O equilíbrio fiscal, os índices de crescimento, a taxa de juros são tratados como indicadores de desenvolvimento e se definem como prioridades das políticas públicas, medindo o maior ou menor sucesso das políticas governamentais. Enquanto isso, a situação social se define por indicadores mais sombrios em função das linhas de pobreza (um ou dois dólares por dia) [3], do índice de desenvolvimento humano; referências que o cidadão comum não faz idéia dos significados enquanto o acompanhamento só interessa aos especialistas.
Tudo isso tem um papel importante na manipulação da consciência social dos mais pobres. A referência à renda monetária como condição de acesso aos mercados de bens e serviços é um viés da ideologia capitalista cuja cadeia de significados estabelece uma relação direta entre a pobreza associada à falta e a sua antítese, a riqueza, associada à abundância, ao crescimento econômico, ao desenvolvimento.
Esse é outro ponto cego das políticas desenvolvimentistas tradicionais que impendem uma maior reflexão crítica da perversa dialética abundância e falta, uma vez que a abundância dos ricos está diretamente relacionada à falta para os pobres. Em vez de se aprofundar essa questão, se manipula a falsa idéia que a passagem da falta para abundância, da exclusão para a inclusão, depende de cada um e estaria relacionada à racionalidade da inserção econômica e à competitividade de cada um.
Os programas de desenvolvimento, confinados ao domínio da técnica e da planificação governamental ficam fora da compreensão e da ingerência das camadas populares que ficam entregues aos cuidados da tecnocracia, mesmo nos modelos ditos participativo onde as decisões estratégicas terminam legitimadas pela adesão das lideranças comunitárias em troca da oportunidade de decidir sobre limitadas as prioridades locais. Para aumentar a falta de controle sobre os programas de desenvolvimento a comunicação institucional confunde meta com realizações, crescimento econômico com desenvolvimento, geração de emprego com distribuição de renda, projeto piloto com os impactos sociais prometidos.
Completando esse quadro de manipulação, induz-se a idéia de que desenvolvimento é tecnologia, é produção, é abundância, é o fetiche do consumo. Cria-se assim a ilusão de que os benefícios da modernidade podem ser estendidos a todos pelo consumo. A esperança dos pobres é que as sociedades subdesenvolvidas podem com algum esforço e em particular com o domínio do conhecimento e da tecnologia, superar os limites da pobreza. O desenvolvimento resultaria de estratégias e capacidades competitivas na disputa de mercados. Supostamente esse seria o único caminho para se atingir os padrões das sociedades abastadas.
Um novo olhar sobre a pobreza
No final do século XX Amartya Sem e outros intelectuais rompem com os padrões clássicos de abordagem da pobreza ao enunciar que: “a pobreza deve ser vista como privação de capacidades básicas em vez de meramente como baixo nível de renda”. [4]
A tecnocracia termina por reconhecer que a pobreza é um fenômeno mais amplo que a sua expressão econômica e que não se reflete apenas na falta de rendimentos e consumo. Formalmente estende-se o conceito de pobreza a um estado de privação mais abrangente, que envolve a ausência de várias capacidades consideradas básicas para o desenvolvimento humano, como a participação política, o respeito às diferenças, a posse de ativos como terra e educação. “A pobreza humana concentra-se na falta dessas capacidades – viver uma vida longa, saudável e criativa, ser instruído e usufruir de um nível de vida decente, dignidade, auto-estima e respeito aos outros”. [5]
Com uma maior abrangência de indicadores sociais e econômicos, as Nações Unidas constituem em 1990 o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) com o objetivo explícito de marcar as maiores carências das pessoas pobres e marginalizadas. Desde então o IDH tem sido uma das principais e mais completas referências para a análise social comparativa entre os países, muitos dos quais usam dados estatísticos internos para estudar os desníveis de desenvolvimento inter-regionais. No Brasil o PNUD articula-se com o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas) e com a Fundação João Pinheiro para detalhar o IDH por município, por Estado e Região. Mas, se as limitações dos indicadores de renda constituem uma unanimidade entre os analistas mais preocupados com a complexidade do problema do desenvolvimento, tampouco as três dimensões do IDH parecem satisfazer as exigências de uma análise mais profunda da questão.
Apesar de ter sido legitimado nos últimos 14 anos, o IDH padece de óbvias limitações. Nem tanto por subestimar o papel das desigualdades, mas principalmente por se concentrar numa absurda média aritmética dos desempenhos da renda per capita, da saúde, e da educação, como critério de classificação dos países, como se eles participassem de torneios mundiais de desenvolvimentismo.[6]
Partindo dessa crítica, Veiga ressalta a importância de um índice multidimensional que possa dar conta da complexidade do desenvolvimento, como o que vem sendo implementado sob coordenação da equipe de Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade de Campinas que se propõe ir além da medida e comparação das condições entre países, regiões e cidades, para servir de base à formulação de projetos éticos-políticos que espelhem um estado desejado em relação a um conjunto de 21 indicadores cobrindo o bem estar econômico, a competência técnica, as condições sócio-ambientais, saúde, educação, proteção e coesão social.
Quem são os pobres
Mas afinal, servindo-se dessas referências quem são os pobres? Medidos pelas referências conceituais e metodológicas dos organismos internacionais os pobres do mundo seriam 2,7 bilhões de pessoas. Mesmo questionando os indicadores desse cálculo, não seria exagero imaginar que a penúria atinge quase metade da população mundial, pessoas sem as condições mínimas de segurança alimentar, vivendo em habitações precárias, sem garantias legais, sob regimes políticos autoritários e discricionários, freqüentemente sob domínio militar em guerras civis e de ocupação.
Mas o compromisso da cooperação multilateral com essa situação parece desproporcional aos seus próprios números. O Banco Mundial, por exemplo, sendo o principal financiador dos programas de desenvolvimento para os paises pobres, não dispõe mais de que 30 bilhões de dólares anuais em empréstimos, o que representa pouco mais de 0,1% do PIB anual dos 20 países mais ricos do Mundo, cuja soma é superior 24 trilhões de dólares.
No seu discurso de abertura da 59ª Assembléia-Geral da ONU em Nova Iorque, 21 de setembro de 2004, o Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva constata a apatia dos mais ricos em relação ao crescimento da penúria nos paises pobres. Ele ressalta que a diferença de renda per capita entre os paises mais ricos e os mais pobres que era inferior a 5 vezes em 1820 passa para 80 vezes nos dias atuais.
“Em 54 países a renda per capita está mais baixa do que há dez anos. Em 34 países, a expectativa de vida diminuiu. Em 14, mais crianças morrem de fome. Na África, 200 milhões padece de fome, doença e desamparo, ao qual o mundo se acostuma, anestesiado pela rotina do sofrimento alheio e longínquo. A falta de saneamento básico matou mais crianças na década passada do que todos os conflitos armados desde a II Guerra. Da crueldade não nasce o amor. Da fome e da pobreza jamais nascerá a paz. O ódio e a insensatez que se alastram pelo mundo nutrem-se dessa desesperança, da absoluta falta de horizontes para grande parte dos povos. Apenas neste ano, mais de 1.700 pessoas já morreram vítimas de ataques terroristas ao redor do mundo; em Madri, Bagdá, Jacarta”.
É claro que, dentro dos limites acima referidos não se pode desprezar a solidariedade institucional dos organismos multilaterais e a ajuda humanitária de doadores em todo o mundo. Mas é preciso considerar que essa ajuda, além dos limites de valores, não é assim tão desinteressada. Em lugar de estabelecer compromissos mais consistentes com a efetividade do desenvolvimento, termina se orientando prioritariamente no sentido de reduzir as tensões sociais criadas pelo próprio sistema econômico e político dominante. Esse interesse muito seletivo dos países doadores aparece, por exemplo, nas contas globais do Programa de Alimentação Mundial (PAM). “A ajuda humanitária se orienta conforme os interesses dos países doadores“, diz Sylvie Brunel, presidente da Ação Contra a Fome. O Afeganistão recebeu de abril a outubro de 1998 95% dos US$ 82 milhões programados, enquanto os US$ 79 milhões esperados para cobrir as conseqüências do ciclone Mitch entre julho de 1999 e julho de 2002 só tiveram 38% cobertos. “No Afeganistão a operação militar é acompanhada de um serviço humanitário para tranqüilizar a consciência.” [7] A própria Brunel constata que como a América Central não tem rede terrorista nem bomba atômica para fazer tremer o Ocidente, a sua prioridade passa a ser menor para a ajuda humanitária, por mais grave que sejam os seus problemas.
Mas a falta de compromisso com as políticas ditas de inclusão não é privilégio da relação dos organismos multilaterais com os países periféricos e conflagrados. Nas sociedades industrializadas as relações sociais estão em crise com a perda gradual da capacidade do Estado para financiar as prestações sociais garantidas por lei aos cidadãos. Enquanto nos Estados Unidos trabalhadores perdem direitos nas relações de trabalho, na Europa, o neoliberalismo atribui a perda de competitividade, de crescimento econômico e a redução do emprego ao custo de manutenção dos direitos sociais aos idosos e aos mais desfavorecidos.
Até a dinâmica do sistema econômico parece comprometida por uma lógica liberal, cuja complexidade ultrapassa os limites das estratégias das políticas publicas. O instituto de estatísticas francês INSEE contata que o crescimento econômico de 2004 (2,3%) foi resultado de um incremento de 3,8% nos investimentos e ainda assim parece insuficiente para reconquistar os empregos perdidos na economia nos últimos anos (70 mil em 2003), mantendo o índice de desemprego em torno de 10%. Tudo isso no quadro de um aumento de preço de produtos de grande consumo estimado pela UFC (Union Fédérale des Consommateurs) em 11,2% entre 2000 e 2004[8].
Nos últimos anos esse quadro vem se deteriorando com grande velocidade na Comunidade Européia em decorrência dos ajustes da unificação monetária e comercial e da socialização da pobreza com a crescente onda de migrações vindas dos países do leste, da Ásia e da África. Naturalmente esses mundos não estão isolados, a miséria começa a ser globalizada pela grande migração vinda dos países periféricos em busca de trabalho, renda e condições de vida mais dignas, contribuindo para o ressurgimento de um subproletariado sujeito a condições de maior penúria, além da xenofobia e do racismo.
Os Estados Unidos também têm sentido as conseqüências do agravamento da crise do modelo econômico do qual são os principais avalistas e os maiores beneficiários. O Census Bureau, órgão de estatísticas do governo americano constata em sua publicação de 2004 sobre a pobreza[9], que o número de pobres cresceu em 2003 pelo terceiro ano consecutivo como conseqüência da crise do emprego, atingindo principalmente os estados do sul e as famílias de renda mais baixa. O índice de pobreza atinge 12,5% dos domicílios enquanto apenas 20% das famílias concentraram 49,8% da renda do país no ano passado, uma tendência persistente de crescimento, considerando que em 2002 eram os 49,7%, e em 1983 eram 44,7%.
As desigualdades sociais acontecem em escala mundial, mas se refletem diferentemente nos países periféricos. O Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, trabalhando com os dados do Censo 2000 calcula que, um em cada três brasileiros, cerca de 56 milhões de pessoas, vive abaixo da linha de pobreza definida por uma renda per capita inferior a 79 Reais mensais. Já o Banco Mundial, com base nos dados da Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio estabelece uma linha de pobreza extrema fixada em 65 Reais, em função do custo de uma cesta básica de alimentos, 35 milhões de pessoas, 63% dos quais no nordeste. Um pouco mais de metade desses pobres (52,5%) vivem em áreas urbanas.[10]
Os Indicadores Sociais Municipais do IBGE com base no Censo 2000 informam que nos 5.507 municípios 7,4 milhões de famílias (27,5 milhões de pessoas) estão expostos a situação de alta gravidade social e econômica. Esse segmento social se constitui de famílias com crianças, com renda per capita inferior a meio salário mínimo mês, enquanto a pessoa que assume a cabeça da família mal saber ler e escrever. Essas famílias dependem fundamentalmente das políticas de transferência direta de renda para subsistir. Embora com prestações muito aquém das necessidades de subsistência os programas de transferência de renda no Brasil já atingem cerca de 8 milhões de família.
Segundo dois pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, Marcelo Néri e Luisa Carvalhares, a solução dos problemas da pobreza absoluta no Brasil não seria exageradamente caro. Para demonstrar esse argumento, fizeram um interessante exercício com objetivo pedagógico, publicado na página da FGV na Internet sob o título Mapa do fim da fome: o retorno, onde procuram demonstrar com certas simplificações que o custo de se acabar com a fome e colocar os 56 milhões de brasileiros acima do patamar de pobreza (R$ 79 mensais) representaria um desembolso mensal de 2,3 bilhões de reais. Rateando esse valor com a parte da população que já estaria acima desse patamar, o custo do fim da fome no Brasil seria da ordem de 21 reais para cada brasileiro por mês.
Desilusão e crítica
Apesar da fala do Presidente Lula nas Nações Unidas, as realizações do seu governo ficam muito aquém das expectativas dos seus eleitores. No caso da reforma agrária, por exemplo, o governo não cumpriu o que havia prometido, assentando apenas 68 mil famílias das 115 mil prometidas. O líder maior do MST João Pedro Stedile, tradicional aliado de Lula e do PT faz cobranças muito enfáticas.
“O dado demonstra o que estamos avisando o governo há muito tempo. A reforma agrária está a passos de tartaruga, no tamanho e na qualidade. O governo está em dívida conosco no seu acordo firmado em novembro de 2003, que assentaria 400 mil novas famílias [até 2006], priorizando aquelas que sofrem debaixo de lonas pretas”[11].
A crítica vai além da cobrança das metas, considerando que “o governo Luiz Inácio Lula da Silva precisa recuperar as diretrizes da proposta do PNRA (Plano Nacional de Reforma Agrária), com a seleção de regiões prioritárias, como a zona canavieira do Nordeste e da pecuária do Centro-Oeste.”
Os movimentos da sociedade civil têm cobrado também os compromissos do Governo do PT que eles se orgulham de ter ajudado a eleger, mas que menos de três anos depois, não reconhecem mais como seu. O presidente da secção pernambucana da Ordem dos Advogados do Brasil demonstra isso de forma muito explícita.
“No campo social, daquilo que foi prometido à população, o governo Lula pouco tem conseguido realizar. Aumentam, a cada dia, as desigualdades sociais, o desemprego, a falta de distribuição de renda, o direito à educação, à saúde, à alimentação, a falta de aplicação da justiça social e, conseqüentemente, à cidadania. É lógico que o Brasil necessita de estabilidade econômica, precisa ter as contas públicas regularizadas e um bom grau de desempenho, mas não podemos admitir um país com cada vez mais desigualdades sociais, tudo em nome da estabilidade das contas públicas e do equilíbrio econômico-financeiro”.[12]
Na mesma matéria do JC a coordenadora da Regional Nordeste da Comissão Pastoral da Terra revela também o desencanto da igreja mais vinculada às lutas sociais no Brasil com o governo Lula.
“No fim do primeiro ano de governo demos um desconto porque acreditávamos que Lula estava arrumando a casa e logo tudo estaria melhor. Mas nada disso aconteceu. Muito pelo contrário, os problemas sociais têm se agravado sistematicamente. Com relação à Reforma Agrária, os últimos dois anos foram terríveis. Ao contrário do que prometeu, o Governo Federal está mais preocupado com o crescimento do agronegócio e dos números da balança comercial que com a execução de uma política efetiva de reforma agrária. Em função disso, o número de conflitos tem crescido, especialmente em Estados como Pernambuco, Pará, Mata Grosso e Minas Gerais. A reforma agrária, de forma geral, vai muito devagar para as necessidades e as exigências da marcha dos trabalhadores rurais que demandam a terra para viver e trabalhar”.
O Movimento Nacional de Direitos Humanos também cobra coerência do governo cujas políticas de inclusão social parecem cada dia mais desvinculadas das expectativas geradas à esquerda.
“Houve alguns avanços durante o governo de Lula como, por exemplo, a criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos e a discussão de políticas voltadas para as minorias. Mas ainda é muito pouco em relação ao montante dos problemas que envolvem a questão dos direitos humanos. Esperávamos um comprometimento social maior da gestão. Afinal, estamos falando de um grupo político ligado a uma luta histórica pela melhoria real da qualidade de vida no País. O que vemos hoje é a reprodução de uma política econômica excludente, totalmente desfavorável a uma grande parcela da população brasileira”.
A pobreza num arranjo estrutural perverso
Da mesma forma como os segmentos mais pobres da população, os favelados, os moradores de rua, estão incluídos em economias de assimetrias sociais, os países periféricos parecem estruturalmente incluídos no sistema econômico internacional. A relação entre o mundo desenvolvido e sua periferia corresponde a uma divisão de papéis entre produtores e exportadores de tecnologias e de bens industriais e exportadores de matérias primas. Esse quadro pouco tem mudado nos últimos anos, sedimentando uma relação de dependência estrutural que não se reverteu, apesar dos esforços de industrialização e do grande investimento realizado a custas de um endividamento que agora aprisiona essas economias subsidiárias ao capitalismo financeiro sob controle das grandes corporações internacionais.
Na base dos paradoxos desenvolvimentistas apresentados anteriormente, estaria assim uma divisão estrutural do sistema capitalista internacional, cujas raízes históricas remontam à formação do capitalismo moderno que se consolida nos anos que se seguem à segunda guerra mundial[13]. As dependências financeiras, tecnológicas e mercadológicas dos países periféricos terminam por inibir a capacidade de investimento dos Estados que priorizam o equilíbrio fiscal, aplicando prioritariamente os recursos poupados pela austeridade nos gastos públicos no pagamento do serviço da dívida[14], em detrimento da dinâmica econômica e da redução do investimento na infra-estrutura necessária ao desenvolvimento.
Essas referências estruturais do subdesenvolvimento revelam que o baixo desenvolvimento dos países periféricos não é apenas uma questão de “boa governança” e de projetos racionalmente planejados e implantados. Entre os bens sucedidos planos de recuperação dos países europeus devastados pela guerra e as lutas dos países do terceiro mundo para se incorporar à modernidade, há uma distância que não pode ser compreendida apenas pela competência das classes dirigentes e pela decalagem da estrutura produtiva. É preciso compreender antes de tudo, que, de um lado, o esforço do plano Marshal visava recompor o próprio núcleo do sistema capitalista formado pelos países industrializados que haviam se envolvido na guerra e que eram essenciais à dinâmica capitalista; sobretudo naquele momento da guerra fria em que se contrapunham os países socialistas. A salvação do sistema capitalista exigia um esforço conjunto para recuperação inclusive dos países que foram inimigos na guerra, mas que eram os verdadeiros parceiros econômicos.
Do outro lado, a ajuda aos países subdesenvolvidos, embora também se tratasse da consolidação da estrutura do sistema capitalista, tinha um caráter político e econômico diferente. Na prática a função dos países periféricos no sistema capitalista parece fundamental, mas apenas subsidiariamente, como linha auxiliar garantindo as fontes de matérias primas, ao mesmo tempo se constitui um nicho consumidor de linhas de produtos de baixa qualidade. Da mesma forma, sobretudo no processo de industrialização para substituição de importações esses países se constituem espaço para transferência de plantas industriais já amortizadas na contabilidade dos países de origem e suficientemente obsoletos para perpetuarem o atraso estrutural e a dependência tecnológica.
A livre concorrência que legitima uma das mais importantes instituições da atualidade, a Organização Mundial do Comercio, pouco tem contribuído para a mudança desse quadro de dependência estrutural. Para caracterizar a relação desigual com relação à política econômica dos países ricos e as condições comerciais impostas aos países pobres, o presidente da Tanzânia, Benjamin William Mkapa, lamentou no Fórum Econômico Mundial de 2005 em Davos, na Suíça que os países pobres sejam levados a arcar com dois tipos de prejuízos.
“Nossas exportações são basicamente de commodities, sem valor agregado e de preços instáveis e injustos; na hora de nos endividar, os riscos são para ambos os lados, mas, na hora de pagar, os ricos não aceitam a divisão de riscos”[15].
Na mesma reunião o ministro britânico do Tesouro, Gordon Brown disse que países ricos gastam por ano cerca de US$ 300 bilhões em subsídios agrícolas, dez vezes o orçamento do Banco Mundial para apoiar o desenvolvimento dos países pobres, os mais prejudicados por essas políticas de subsídios.
Essa estrutura consolidada e hierarquizada do sistema econômico internacional é atualmente mais concentrada do que pode parecer: os 20 países mais ricos do mundo concentram sozinhos mais de 76% do Produto Mundial Bruto, 13,6% da população mundial. Treze desses países estão entre os quinze mais competitivos do mundo, demonstrando que as relações de mercado tendem mais a consolidar do que a alterar o quadro de dependência.
Mas, a irreversibilidade dessa situação não se deve somente a questões tecnológicas, mercadológicas e financeiras. Existem condicionantes ambientais e de disponibilidade de recursos não renováveis que limitam a produção da maioria dos bens de consumo que estão ao alcance das populações dos países desenvolvidos, cuja disponibilidade não seria suficiente para atender a grande massa dos habitantes dos países periféricos.
O mito do desenvolvimento
Já nos anos setenta, o economista Celso Furtado falava em mito do desenvolvimento, prevendo que a reprodução desse modelo de desenvolvimento era limitada e falaciosa, levada a efeito pelos arautos da modernidade, mais como um dispositivo de manipulação política do que como um projeto comprometido com os países periféricos.
Temos agora a prova cabal que o desenvolvimento econômico – a idéia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida atuais dos povos ricos – é simplesmente irrealizável. Sabemos agora de forma irrefutável que as economias das periferias nunca serão desenvolvidas no sentido de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. Mas, como desconhecer que esta idéia tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar enormes sacrifícios para legitimar a destruição de formas de culturas arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidade de destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sistema produtivo? [16]
Num olhar mais recente, expresso em artigo publicado na Revista da Cepal, de outubro de 1998, Furtado reconhece que o capitalismo entra numa nova fase, cujos contornos se definem pelo crescimento da capacidade de investimento, pelo aperfeiçoamento tecnológico e pelo aumento dos padrões de consumo do mercado interno. Além do domínio tecnológico, a condição fundamental desse novo desenvolvimento que estaria ocorrendo, especialmente nos países da Ásia e, sobretudo na China, impõe uma grande disciplina social com os salários regulados em função da competitividade internacional e uma economia planejada onde o Estado forte tem um papel determinante na regulação social. Ora, essa é exatamente a antítese do que se propõem os cânones da democracia e, mais ainda, do capitalismo liberal.
Para acrescentar um complicador a esse quadro que caracteriza as políticas de desenvolvimentos para os países periféricos, há que se fazer atenção ao crescimento da importância das corporações empresariais no cenário do capitalismo. No controle das instituições dos países centrais, se consolida essa divisão de trabalho que determina, não apenas o caráter suplementar das economias dos países periféricos, mas também os limites do padrão de vida dos estratos sociais mais pobres aumentam consideravelmente nesses países. E assim se equilibrariam indefinidamente as assimetrias políticas e sociais que denunciam a inviabilidade do desenvolvimento dos países periféricos, não fossem outras dinâmicas que ocorrem na organização e na politização das camadas mais pobres da população, das quais a violência crescente é o traço mais visível, como trataremos mais adiante.
Essa visão crítica do desenvolvimento contrasta com o aparente sucesso dos planos nacionais de desenvolvimento nos países periféricos questionados pelas correntes intelectuais e políticas de esquerda. Na prática, é preciso notar que as avaliações correntes dos programas de apoio ao desenvolvimento do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e de outras instituições de cooperação internacional podem ser positivas quando avaliam a eficiência da aplicação dos recursos e de execução dos projetos e a eficácia em atingir os objetivos específicos a cada projeto. O problema real, menos avaliado, ou cujas avaliações são menos divulgadas, é com a efetividade e o impacto desses programas na redução dos níveis de pobreza e de dependência crônica, tanto nas condições de vida das populações mais desprovidas, como nas relações políticas e econômicas dos países periféricos com as economias mais desenvolvidas.
Mas a falta de visão crítica dos programas de desenvolvimento não poderia ser debitada apenas às falhas técnicas ou políticas de avaliação. É preciso ser considerado aqui o caráter mistificador da abordagem dos problemas da pobreza e do desenvolvimento a que me referi anteriormente. Os reducionismos economicistas do desenvolvimento colocam os holofotes da mídia sobre os aspectos mais espetaculares dos programas, como os valores milionários dos acordos de cooperação ou, no outro extremo, sobre casos bem sucedidos de pequenos projetos especiais expostos na vitrine como exemplo.
A mistificação é sutil e se opera também a nível semântico com palavras que mudam em função do desgaste das anteriores. O que se chamava durante os anos sessenta de terceiro mundo passa a ser chamado de países de industrialização tardia, de capitalismo tardio, de países em desenvolvimento, de países emergentes. São os termos que mantêm a esperança de que alguma coisa está em vias de acontecer, de que o desenvolvimento, embora tardio, está para chegar. Responde-se à excitação dos projetos com acenos ao futuro e à paciência da população. Na prática, os programas de desenvolvimento funcionam mais para reduzir o nível de tensão e de cobrança dos mais pobres do que inspiram confiança sobre um futuro desenvolvimento; algum sinal de esperança que atrase e contenha a desesperança e a reação contra as instituições.
Mas essa paciência pode estar se acabando. Ao longo dos anos o preço da manutenção dos padrões de desenvolvimento dos países mais ricos, que beneficiam pouco mais de 800 milhões de habitantes começa a provocar reações desesperadas em um contingente de pobres três vezes maior. Sinal disso é a crescente onda de migrações dos países periféricos para os países centrais que duplicou desde meados dos anos de 1970 – para cerca de 175 milhões. Os números aumentaram de forma mais significativa nos países mais ricos. O número de migrantes para a União Européia proveniente de fora da Europa subiu 75% desde 1980. [17]
Esses movimentos migratório, espontâneos e pouco politizados, fruto de estratégias individuais de subsistência de um número crescente de pobres desesperados pela miséria de suas próprias terras. Mas existem outras lutas políticas da sociedade civil, como expressões localizadas ou globalizadas da insatisfação com as desigualdades sociais. O Fórum Social Mundial, as manifestações pelo fim da fome, os movimentos organizados de camponeses na América Latina, as marchas pacifistas e ambientalistas que se expressam em todo o mundo. Surge uma consciência política capaz de provocar reações de contestação contra as injustiças sociais cujas dimensões globalizadas não são previsíveis.
A mística do desenvolvimento
O célebre título de Celso Furtado dos anos 70, “O mito do Desenvolvimento” reaparece no livro de Oswaldo Rivero em 2001[18] e de uma maneira mais discreta em obras como a coordenada por Arbix, Zilbovicius e Abramovay[19], onde se analisam as razões e as ficções do desenvolvimento. Constatam esses autores que depois de meio século de programas de desenvolvimento, poucas respostas foram dadas às esperanças dos países periféricos e, em particular, daquelas populações que perderam suas condições de subsistência, premidos pela modernização da economia e pela concentração da renda que se segue ao domínio crescente do capitalismo. Como diz Simon Schwartsman: “a desigualdade de renda está crescendo tanto entre países como dentro deles” [20].
No período que se segue ao Plano Marshal para recuperação da economia européia e no entusiasmo da conferência de Bretton Woods, o desenvolvimento virou palavra da moda. Até então o que se conhecia por desenvolvimento, estava associado aos ciclos da vida: nascimento, crescimento e morte; a evolução intelectual e à maturidade da pessoa, passando da adolescência à idade adulta, de aprendiz a mestre. A aplicação desse conceito no âmbito social se associaria assim à idéia de que existiria uma evolução natural das sociedades modernas, do subdesenvolvimento ao desenvolvimento, da produção artesanal à industrialização e ao constante aperfeiçoamento tecnológico; um ciclo racional da econômica como destino impreterível das sociedades humanas. Uma simplificação reducionista que termina por legitimar o domínio do econômico e da técnica como determinante da evolução histórica do sistema social.
Schwartsman, citando Gino Germani (1973); Alex Inkes & Dadid Horton Smith (1974) Daniel Lerner (1958) e Lucian Pye (1962), lembra que a generalização da tendência desenvolvimentista da segunda metade do século XX não tinha muita consistência:
Na época, era generalizada a crença em que mais cedo ou mais tarde, todas as sociedades tradicionais acabariam por se tornar modernas e o problema deixaria de existir. No início do século XXI ficou claro que as coisas são mais complicadas e muito pouco das teorias de modernização de trinta ou quarenta anos atrás ainda é lembrado.
Não obstante essa falta de consistência, políticos, intelectuais, técnicos em todo o mundo foram fisgados pelas idéias desenvolvimentistas. A cooperação multilateral para o desenvolvimento, sob o signo da racionalidade e do planejamento econômico, se constitui no seio das Nações Unidas com a criação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, base institucional desenvolvimentista, que chega à América Latina em 1948 com a criação da Comissão Econômica da América Latina – CEPAL.
É possível constatar que o desenvolvimento sempre envolveu práticas políticas muito controvertidas, dividindo opiniões, interesses e compromissos. Durante pouco mais de 30 anos, no período que vai do pós-guerra ao final dos anos 70, parecia ter-se chegado a certa harmonia de interesses, pelo menos no núcleo do sistema capitalista, formado pelos paises mais ricos que cresciam a taxas constantes, com baixo desemprego e relativo equilíbrio nas relações capital-trabalho. A partir dos anos 80, no entanto, a crise de financiamento do Estado providência trás à tona novas facetas do liberalismo reduzindo o tamanho e a capacidade de intervenção do Estado, com ênfase para a racionalidade e para eficiência econômico-financeira. Eis que começa a fazer água a aparente harmonia de prosperidade das três décadas desenvolvimentistas.
As concepções neoliberais de redução do Estado e da regulação pela competitividade que já eram dominantes na economia-política norte-americana se expandem na Europa premida pela necessidade de equilíbrio dos elevados custos da seguridade social e pela perda de competitividade ao norte e ao sul. Como já me referi acima, esses ajustes se ampliam cada dia mais, exigindo constantes renegociações de dos direitos sociais, com redução dos benefícios, aumento das horas trabalhadas sem compensações salariais e, sobretudo, redução do emprego resultante da automação, do fechamento de fábricas obsoletas, transferências de unidades de produção para países de mão de obra barata.
Para além dessas dificuldades dos países desenvolvidos, as contradições do desenvolvimento são mais graves nos países periféricos, que pouco se beneficiaram dos anos dourados, cuja industrialização por substituição de importações termina comprometida pela dependência tecnológica e financeira. Uma análise da literatura da CEPAL sobre esforço desenvolvimentista na América Latina chama a atenção para três níveis de definições controvertidas que se caracterizam como verdadeiros paradoxos do desenvolvimento: a orientação política da economia; as estratégias desenvolvimentistas; a gestão do processo de desenvolvimento.
O papel do Estado no desenvolvimento
No primeiro desses paradoxos aparece entre as orientações liberais reguladas pelo mercado e a função desenvolvimentista do Estado com papeis de planificação e normatização. Nesta perspectiva, o Estado, além de suas funções institucionais como regulador político da sociedade, ocuparia espaços estratégicos na prestação direta de serviços sociais básicos, mas também na indústria de base, na siderurgia, na produção e distribuição de energia, petróleo, combustíveis, no controle dos recursos hídricos, dos serviços bancários.
Largamente defendidas na América Latina pelas esquerdas e pela CEPAL até os anos 80, as políticas centradas nesse tipo de intervenção do Estado foram sendo gradualmente derrotadas no embate com as políticas liberais. A privatização, a desregulamentação e na integração econômica passa a ser o único caminho para suprir as condições de financiamento e inclusão mercadológica, passos considerados indispensáveis ao desenvolvimento.
No Brasil, além da tumultuada abertura às importações do governo Collor de Melo, essa tendência se consolida no Governo Fernando Henrique Cardoso, entre 1994 e 2002 com a continuidade da abertura aos mercados globalizados e com os programas de Reforma do Estado. É no mínimo bizarro que essa tendência neoliberal tenham sido patrocinadas no governo Cardoso por dois antigos defensores da planificação estatal, o próprio Presidente, ex-colaborador da CEPAL da linha da teoria da dependência, e o então Ministro responsável pela reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser-Pereira, membro do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB, um dos redutos do nacionalismo brasileiro.
A orientação radical para o mercado pregada pelo neoliberalismo desloca o foco da economia do mercado interno para as exportações, condicionando a regulação das políticas econômicas nacionais à ótica da economia mundial, ou seja, aos mercados globalizados. Em outras palavras as economias nacionais se submetem à divisão de espaços articulada às lógicas financeiras, comerciais e tecnológicas das grandes corporações multinacionais que controlam os mercados e terminam orientando as políticas públicas no plano internacional e nacional. Nesse contexto, a prioridade pelo mercado interno que poderia funcionar como fator dinâmico do desenvolvimento, perde prioridade para as exportações, cujo maior compromisso é com o equilíbrio do balanço comercial, o mercado de capitais e a dívida pública.
A orientação política do desenvolvimento em países como o Brasil desloca-se assim das prioridades internas para a dependência externa. O mais grave é que essa engenharia de política econômica termina por unir forças aparentemente antagônicas como as que constituíram a base eleitoral que leva o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da república em 2002.
Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp, reconhecendo que não se podem abandonar os compromissos internacionais e o equilíbrio das contas públicas, é preciso um maior compromisso com o mercado interno.
“É essencial, ainda, a melhoria do poder de compra dos salários, somente viabilizada com a redução do montante de dinheiro transferido anualmente da produção para os setores público e financeiro, via juros, impostos e legislação trabalhista anacrônica e paternalista. Por mais importantes e necessários que sejam a filantropia e os programas sociais, nada é mais eficaz e digno do que emprego e renda para a inclusão na cidadania plena.[21]
Na mesma linha, a principal liderança do MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, João Pedro Stedile, tradicional aliado do Partido dos Trabalhadores e do próprio Lula, afirma publicamente num encontro regional do Movimento em janeiro de 2005 que o MST volta a se mobilizar “não contra o governo, mas que forcem o governo a mudar a política econômica“.[22]
Uma síntese dessas contradições sobre os caminhos do desenvolvimento no Brasil termina sendo feita em documento distribuído à imprensa por um dos intelectuais mais caros ao Partido dos Trabalhadores, o economista Carlos Lessa, demitido da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social pelas suas discordâncias sobre as orientações da política econômica do governo Lula.
“O grande capital financeiro, aqui reproduzido, estabeleceu as regras de sua própria internacionalização. Por força dos mecanismos de dolarização criados a seu favor pela elite do dinheiro dominante, a crise social é amplificada pela retração do setor produtivo e do trabalho. Tal internacionalização financeira, com taxas básicas de juros reais nos níveis mais extravagantes do mundo e com uma política fiscal contracionista e sufocante, agrava recorrentemente a crise social.”
O crescimento do bolo e sua distribuição
Atrelado a essas posturas fundadoras do modelo econômico liberal surge um segundo paradoxo desenvolvimentista com foco nas definições dos caminhos estratégicos para se alcançar o desenvolvimento. As correntes distributivistas que priorizam a inclusão social se opõem às estratégias tradicionais de crescimento econômico, na perspectiva da hipótese de Kuznets[23], que pressupõe a implantação de uma economia sólida, como uma massa crítica de recursos para capitalizar o sistema produtivo; só depois que essa economia estiver consolidada é que se poderia pensar em distribuição.
Historicamente, os países de industrialização tardia não conseguiram construir o mesmo equilíbrio entre as forças do capital e as organizações dos trabalhadores garantindo o equilíbrio entre a regulação do mercado de trabalho e os ganhos sociais do Estado. Entre nós, o crescimento foi associado à modernização, ao desemprego e à redução dos salários, em detrimento do poder das organizações trabalhistas, da distribuição de renda e da formação de um mercado interno como fator dinâmico do desenvolvimento econômico.
Nesse contexto, as políticas liberais, mesmo nos momentos de crescimento econômico, não resultam em desenvolvimento social e tendem a reforçar as desigualdades e a dependência com relação aos países centrais. Essa perversão dos modelos tradicionais de crescimento sem desenvolvimento tem sido denunciada sistematicamente na América Latina ao longo de décadas de programas de desenvolvimento por economistas como Celso Furtado, Amartya Sen, Ignacy Sachs, cuja síntese pode ser compreendida no seguinte parágrafo de um artigo de José Eli da Veiga[24]
Se o Brasil hoje apresenta chocantes desigualdades de gênero, raça, região, e riqueza, além de medonhos níveis de pobreza de renda, de saúde e de educação, isto se deve ao estilo, ou qualidade, de seu estupendo crescimento no período 1930-60, mais o do surto que passou para a história como milagre (1967-73). Quando os frutos do crescimento são utilizados para reforçar a matriz institucional herdada de uma sociedade oligárquica e escravocrata, em vez de servir para transformá-la, seus benefícios não chegam sequer a melhorar o acesso das populações mais vulneráveis àquilo que foi estabelecido na velha Declaração dos Direitos do Homem. Pior, a permanência de instituições patrimonialistas faz com que o progresso material de algumas elites seja obtido às expensas da qualidade de vida, não apenas de multidões de desvalidos amontoados nos purgatórios que rodeiam meia dúzia de metrópoles e dezenas de aglomerações urbanas, mas, sobretudo, das gerações futuras, com as quais costuma ser nula a preocupação da maioria dos empresários e economistas.
O colonialismo dos programas desenvolvimentistas
A crítica desses paradoxos tem sido inibida ao longo dos anos pelo colonialismo das lógicas e teorias validadas para as economias industrializadas e sua aplicação aos paises periféricos através da ortodoxia da economia-política, sob argumento de modelagem das bases do desenvolvimento. Essas receitas não escondem o propósito evidente de garantir a regularidade e a confiabilidade do mercado de capitais nacional para o sistema financeiro internacional, fonte permanente de dependência, incerteza e instabilidade.
Numa seqüência lógica da dependência externa, o terceiro nível de paradoxos, tem seu foco no âmbito operacional e gerencial dos programas e projetos de desenvolvimento, entre os propósitos que os justificam e as práticas a que ficam submetidos; entre as ambições desenvolvimentistas e as limitações de ações piloto, sem impactos significativos para o conjunto da população a que se destinam. Na prática, os bilhões de dólares dos empréstimos internacionais dos programas de cooperação multilateral de organismos como o Banco Mundial terminam se pulverizando em um grande número de pequenos projetos. Na intenção de servir de referência à boas práticas locais inovadoras, esses projetos, mesmo quando implementados com eficiência, terminam por se perder na falta de integração, na descontinuidade e no excesso de burocracia das negociações desses acordos.
A lógica colonialista desses projetos se expressa também no domínio normativo da formulação e implementação, sem atenção às iniciativas, à cultura e aos saberes locais. Na maioria dos casos as soluções induzidas de fora podem comprometer práticas tradicionais apropriadas pela cultura local onde se estruturam a subsistência cotidiana. É o caso, por exemplo, das mudanças de cultivares agrícolas tradicionais que garantem a alimentação dos pequenos agricultores familiares por outros que visam segmentos mercadológicos e canais secundários de comercialização que estão fora do domínio local. O agricultor deixou de plantar o que comia, para plantar o que não come, nem consegue vender por um preço compensador.
Nesse quadro singular se inscrevem, ainda a nível operacional, dois aspectos contraditórios do desenvolvimentismo: i) a complexidade da lógica econômica competitiva dificílima de ser compreendida e implementada pelas populações mais tradicionais; ii) a inibição das competências e projetos de iniciativa das próprias comunidades, pela sua falta de competitividade mercadológica ou, simplesmente, por serem desqualificadas em relação aos padrões técnicos da modernidade que conduz as políticas de desenvolvimento.
A análise dessas contradições revela os traços conservadores dos programas de desenvolvimento destinados às populações mais desprovidas de capacidades técnicas em detrimento de ações mais efetivas, fundadas na cultura e nas iniciativas locais cuja implementação poderia mitigar os antigos e graves problemas da pobreza e da miséria no mundo. A indução de soluções endógenas, colonialistas, termina sedimentando na população, nos segmentos técnicos e nas elites políticas uma lógica que interpreta os projetos como dádivas, validando a priori qualquer ação dita desenvolvimentista.
Um exemplo típico desse comportamento é a maneira como são assumidos os empréstimos de fundos multilaterais destinados aos programas de desenvolvimento e combate à pobreza. A aceitação dos empréstimos nas condições determinadas pelas agências se justifica pela disponibilidade dos recursos diante dos crescentes limites orçamentários dos paises comprometidos com os juros da dívida. Aliás, esses recursos assumidos pelos tesouros nacionais são tratados, tanto pelos órgãos governamentais aos quais são alocados, como pela sociedade civil, como quase-doações, numa lógica utilitarista do tipo: a cavalo dado não se olham os dentes.
O mais grave dessa situação é que essas atitudes politicamente passivas perante os programas de desenvolvimento não ocorrem apenas no plano objetivo da racionalidade econômica e das práticas gerenciais. Existem referências simbólicas que consolidam essas tendências de aceitação dos modelos de desenvolvimento impostos de fora para dentro. São percepções da cultura técnica assumidas pela tecnocracia e incorporadas à lógica racional do argumento político, inclusive pelas lideranças e pela militância popular que não conseguem diferenciar projetos por falta de domínio dos conhecimentos técnico e teórico envolvidos.
Essa aceitação tácita do desenvolvimentismo começa pelo próprio conceito de desenvolvimento que se imbrica historicamente às imagens de prosperidade das sociedades industrializadas, aos irrefutáveis argumentos da modernidade sobre a superioridade da racionalidade técnica e do progresso, em contraposição ao atraso e à ignorância. Em todos os níveis sociais, a civilização ocidental encantou-se ao mesmo tempo com a tecnologia moderna e com o american way of life estrelado nos românticos filmes de Hollywood. Sonhos que embalaram gerações e cujas frustrações foram sendo mediadas pelo acesso das classes médias e até dos mais pobres favelados a certos símbolos de modernidade e prosperidade; do jeans, ao automóvel, à geladeira, ao televisor.
Tudo dificulta uma avaliação crítica da situação sem perdas significativas da auto-estima. São os efeitos colaterais do desenvolvimentismo introduzindo mudanças permanentes nas referências simbólicas de sociedade que pouco se apercebe da violência dessa dominação externa que é ao mesmo tempo burocrático-financeira e ideológica. Continua-se a falar de desenvolvimento, de evolução, de progresso, sem se questionar muito sobre os seus verdadeiros significados para o ser humano e para a sociedade. Nem mesmo os aspectos negativos da vida moderna parecem interferir nesses sonhos.
Chega-se a confundir o progresso com os seus efeitos perversos, orgulhosos dos seus sinais, mesmo quando isso significava perda de qualidade de vida. Quantas vezes não se citam o tamanho das cidades como sinal de importância. Os habitantes de Salvador, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre disputaram muitos anos com orgulho o lugar da terceira maior cidade do Brasil, sem se darem conta do crescimento dos engarrafamentos, dos acidentes e da violência urbana que denunciavam a perda de qualidade de vida na mesma proporção do crescimento ou do inchamento populacional.
As contradições foram assim gradualmente absorvidas no imobilismo das forças políticas; de um lado o progresso técnico, status econômico, sucesso individual, valorização do consumo supérfluo; do outro o crediário, o endividamento, à privação. Valorizava-se simbolicamente o que não se tinha, o que era de fora, em detrimento da cultura, da tradição e da identidade local, coisas mais simples que estavam ao acesso da maioria, com as quais, até então, todos viviam satisfeitos. Do outro lado, o estresse que atinge as classes médias, os trabalhadores de renda inferior e até os desempregados e biscateiros, vivendo nos limites das suas posses, sem garantias de estabilidade do trabalho e da renda.
Por outro lado, é forçoso reconhecer que, apesar da crítica política dos intelectuais humanistas, dos defensores do meio ambiente e dos democratas radicais, até hoje, essa sociedade alternativa que agora se intitula de altermundialista ainda não conseguiu mobilizar contingentes significativos de população para adotar padrões alternativos de uma vida mais frugal. O mundo globalizado continua sob o domínio do consumo imposto pela publicidade, sob o estresse da moderna divisão do trabalho e do tempo. Ao contrário, os que estão fora desse mundo caótico o continuam lutando por uma oportunidade de inclusão. O recurso à vida convivial das cidades menores, o sossego do campo, passa a ser condição dos mais idosos que já não trabalham ou que não dispõe dos recursos para disputar os mercados mais competitivos.
E agora José
Pajeando Drumond é hora de perguntar: e agora José? O socialismo real acabou, o desenvolvimento gorou, o sonho e a esperança viram pesadelos e não há mais ideologias revolucionárias em que acreditar. E agora José? Em que vai dar tudo isso? O desemprego continua a acrescer em todo o mundo, a violência cívica ou criminal aumenta a insegurança coletiva e pessoal. Estudantes terminam seus cursos sem perspectiva de conseguir trabalho digno, os jovens desesperados se entregam a trajetórias duvidosas, sem referências morais e políticas mais claras; o mundo se torna um lugar cada dia mais incerto, inseguro e injusto para a maioria da população. A impotência do cidadão comum diante dos megasistemas que dominam o mundo; a perplexidade dos militantes das lutas ideológicas face à hegemonia do pensamento utilitarista do capitalismo; a rendição dos profissionais à evidência acrítica da modernidade e do progresso técnico-científico; o conformismo dos mais pobre como se seu destino tivesse sido decidido por desígnios divinos.
Haverá alguma razão de otimismo? O olhar mais crítico das ciências sociais tem captado alguns movimentos de resistências que precisam ser considerados. Existem sinais que permitem acreditar que nem tudo está submetido à hegemonia do pensamento único. Os espaços alternativos e as forças sócio-históricas de uma nova práxis social podem resultar em projetos de mudança, como parte da natureza dialética intrínseca à sociedade e ao próprio ser humano.
Antes de tudo, é preciso compreender que existem contradições inerentes ao próprio megasistema, nas brechas das quais medram os movimentos de resistência onde se depositam esperanças de mudança. Nem tudo é pessimismo nessa perspectiva. A saída estaria assim em aproveitar as próprias contradições do sistema capitalista globalizado para questioná-lo e fazer avançar espaços comprometidos com as funções de regulação do sistema social que não se subordine às determinações dos megasistemas mundializados.
Uma dessas brechas está nas incertezas das previsões controvertidas e pouco esclarecedoras sobre o futuro dos paises pobres e mesmo o dos paises ricos. Enquanto paises periféricos movimentos sociais ativos cobram com veemência os débitos sociais dos seus governantes, as classes médias dos paises desenvolvidos começam a perder a segurança dos direitos sociais que caracterizaram o Estado Providência nas últimas duas décadas do século XX. Os franceses vêm suas fábricas fecharem ou serem transferidas para paises de mão de obra mais barata. Paira entre eles um fantasma de que os chineses, um dos paises mais pobres do mundo, serão seus futuros patrões. Os americanos precisam apelar para as armas cada dia mais para vencer resistências e garantir sua hegemonia econômica e política. As Nações Unidas se de mostraram incapazes de regular a comunidade das nações nos momentos mais críticos. Mas se de uma amaneira geral, as instituições parecem insuficientes para regular as sociedades e garantir minimamente um clima de paz e de justiça social, se constituem e se consolidam blocos de nações com identidade e legitimidade para redesenhar um sistema de regulação internacional mais complexo e menos dependente dos pólos hegemônicos.
Outra contradição importante é crescente tendência de se fortalecer os espaços locais como contrapondo às hegemonias globalizadas. A experiência tem demonstrado que os segmentos sociais com identidade definida começam a compreender que a definição e as articulações políticas, econômicas e culturais em espaços territorialmente definidos são indispensáveis à autonomia e à autodeterminação de projetos coerentes com as singularidades e os interesses locais.
Começam a surgir também estratégias e dispositivos políticos diferenciados na luta contra as hegemonias globalizadas. Alain Caillé explicita[25] a existência contraditória de novos espaços políticos e econômicos onde se expressam estratégias e dispositivos de resistência às hegemonias da globalização. Reconhecendo a inadequação e inviabilidade dos aparelhos políticos e sindicais face à globalização dos mercados, dos limites às autonomias nacionais e da ampliação da influencia das instituições transnacionais, ele ressalta a existência de novas formas de articulação, transversais aos mercados e com peso decisivo para o futuro da humanidade.
O modelo perverso das liberdades individualizadas do liberalismo econômico globalizado, por exemplo, viabiliza espaços potenciais de mobilização com “o surgimento de múltiplas formas de associações mundiais, horizontais, enraizadas, profundamente democráticas, com força para combater as multinacionais por que são as únicas que têm a sua escala”.
De fato, diversas formas de organização da sociedade civil de caráter local e regional estão se articulando com movimentos nacionais e internacionais através de temas como meio ambiente, direitos humanos, combate à fome, quebra de patente de medicamentos. Nesta perspectivas, as teses altermundialistas da sociedade civil que estão na pauta do Fórum Social Mundial rivalizam em repercussão na opinião publica internacional com as do Fórum Econômico Mundial de Davos, o lugar de reunião dos grandes magnatas do neoliberalismo mundial.
O fato de Davos continuar dando as cartas que regem a economia mundializada e que pautam a vida no ocidente e no oriente, não tira o mérito das teses altermundialista mesmo que estas ainda não tenham inspirado alternativas efetivas para mudar a vida de contingentes significativos de população em nenhuma parte do mundo. Por si só, o caráter instituinte dessas teses com o peso que tem na opinião pública tendem a produzir mudanças.
Por mais incrível que pareça uma maior equidade social começa a interessar também a Davos. Acontece que a maior das contradições da economia globalizada é a associação perversa entre a produtividade e o desemprego decorrente da modernização tecnológica. O crescimento da economia e da produção precisa ampliar o universo de consumidores que tende a se reduzir com o desemprego e a queda da renda. A luta pelo aumento do emprego e pela distribuição de renda termina unindo os projetos liberais e sociais. Nessa perspectiva, o Correio da Cidadania, periódico dirigido por Plínio de Arruda Sampaio, um dos mais coerentes entre os militantes radicais da esquerda brasileira, entende que essa perspectiva poderá ter conseqüências imprevisíveis.
“Os futuros campeões na luta pelos direitos humanos, por mais incrível que pareça, não serão nem tanto os movimentos socialistas, a igreja ou as sociedades de pendor democrático, mas (provavelmente após mais algumas convulsões sociais) a grande indústria, a banca e as redes internacionais de distribuição comercial”.
Essa defesa utilitarista das classes desfavorecidas pelos grandes capitalistas se justificaria à luz de uma raciocínio que sempre foi evidente aos que se poderiam chamar de desenvolvimentistas pós-modernos: a redistribuição justa e eqüitativa da riqueza fornece os meios elementares necessários à dinâmica da economia e em particular ao escoamento continuado da produção de sociedades intensamente manufatureiras.
Numa outra perspectiva, Celso Furtado[26], compreende esses processos de uma maneira mais complexa. Segundo ele não se pode pensar em desenvolvimento através de “um processo de crescimento que deriva seu dinamismo da reprodução indiscriminada de padrões de consumo de sociedades que já alcançaram níveis de produtividade e consumo muitas vezes superior ao nosso, … reproduzindo a cultura material do capitalismo mais avançado, privando a grande maioria da população dos meios de vida essenciais”.
Para ele uma política de desenvolvimento coerente com a situação dos paises periféricos deveria definir claramente “os fins substantivos” a atingir fugindo da lógica que fundamenta o regime de lucro dos interesses capitalistas, particularmente aquelas dos grandes grupos econômicos e do capital financeiro que terminam dominando a política econômica do governo.
Por essa razão o desenvolvimento não pode ficar a reboque dos interesses capitalistas. Uma política econômica para o Brasil deveria buscar a redução das desigualdades sociais se apoiando fundamentalmente nas potencialidades de nossa cultura e de nossos recursos naturais. Segundo ele os paises com grandes desigualdades sociais e ricos em recursos naturais, como o Brasil, são os que mais sofrerão com a globalização, que opera fundamentalmente em benefícios dos paises que estão na vanguarda tecnológica. Nesta lógica seria necessário fugir dos padrões estratégicos de organismos como o FMI, BIRD e outros que induzem orientações políticas ortodoxas como as que adotamos hoje no Brasil.
“Se adotarmos a tese que a globalização constitui um imperativo tecnológico inescapável que levará todos as economias a um processo de unificação de decisões estratégicas, teremos que admitir que é reduzido o espaço de manobra que nos resta.”
O dinamismo do desenvolvimento brasileiro, na visão de Furtado, viria assim do “reencontro com o gênio criativo da nossa cultura”. A mobilização das bases criativas do saber popular em articulação com a vanguarda intelectual daria consistência sócio-histórica a estratégias e modos operacionais singulares ao nosso desenvolvimento. Eis o nosso maior desafio como pesquisadores, como professores, como militantes do desenvolvimento. Apoiar o nosso povo para tomar as iniciativas e as rédeas de um processo de desenvolvimento que não fique atrelado aos modelos e às redes de dependência do capitalismo globalizado. A constituição de uma democracia fundada na formação de sujeitos sociais associativos, organizados em sistemas de redes regionais e nacionais que respeitem as singularidades e autonomias locais é um dos fundamentos centrais do desenvolvimento que se possa chamar sustentável.
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[1] Para compreender e temer a exclusão social, artigo publicado em vida pastoral, ano XLV, nº 239, editora Paulus, São Paulo, novembro-dezembro de 2004, p. 3-9.
[2] Relatório sobre O Combate à Pobreza no Brasil (No. 20475 –BR Brasília, Banco Mundial, 2001)
[3] http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/TOPICS/EXTPOVERTY; tradução do autor.
[4] Sem, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo. Compamhia das Letras. 1999.
[5] Relatório de Desenvolvimento Humano 2000 – PNUD.
[6] José Eli da VEIGA. DNA do Neodesenvolvimentismo. Artigo publicado no Jornal Valor Econômico em 05.10.2004.
[7] Le monde, 11 de outubro de 2004
[8] Le monde, 29 de dezembro 2004
[9] New York Times de 27 de agosto de 2004
[10] Relatório Banco Mundial (No. 20475 –BR) O Combate à Pobreza no Brasil. Volume I: Resumo do Relatório pág 4. Brasília. 2001
[11] Folha de São Paulo, de 4 de janeiro de 2004.
[12] Entrevista ao Jornal do Commércio, de Pernambuco, no dia 03 de janeiro de 2005.
[13] Ver Celso Furtado. Formação Econômica do Brasil. São Paulo. Editora Nacional 1989
[14] Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano PNUD-2004 o serviço da dívida no Brasil consumiu em 2002, 11,4% do PIB e 68,9% das exportações
[15] Jornal Folha de São Paulo do dia 29 de janeiro de 2005
[16] FURTADO, Celso. O Mito do Desenvolvimento. São Paulo, Paz e Terra. 1996
[17] Relatório de Desenvolvimento Humano 2004 – PNUD. pág. 30
[18] Rivero, Oswaldo. O Mito do Desenvolvimento. Os Paises inviáveis do século XXI. Petrópolis, Editora Vozes 2002.
[19] Arbix, Glauco; Mauro Zilbovicius; Ricardo Abramovay. Razões e Ficções do Desenvolvimento. São Paulo: editoa UNESP-EDUSP , 2001
[20] Schwartsman, Simon. Pobreza, Exclusão Social e Modernidade. Augurium Editora, São Paulo 2004.
[21] O destino dos brasileiros, artigo publicado na Folha de São Paulo 9/01/2004
[22] Folha de São Paulo, sexta-feira, 07 de janeiro de 2005
[23] KUZNETS, Simon “Economic growth and income inequality”, The American Economic Review, march. 1955, 45 (1): 1-28.
[24] Valor Econômico , Terça 05-10-04
[25] Ver Introdução da Revue do MAUSS nº 9 do 1º semestre de 1997 (Comment peut-on être anticapitaliste?)
[26] Furtado, Celso. Reflexões sobre a crise brasileira in ARBIX, Glauco; ZILBOVICIUS, Mauro; ABRAMOVAY, Ricardo. Razões e Ficções do Desenvolvimento. São Paulo: Editora UNESP-EDUSP , 2001 p23
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