Aécio Gomes de Matos
Fonte:
MATOS, Aécio Gomes de
Organizações sociais e economia solidária. Brasília: Cadernos do CEAM. Editora da UnB, v.6, p.125 – 142, 2006.
Resumo
As assimetrias sociais associadas às políticas neoliberais de exploração ilimitada dos recursos naturais vêm colocando em cheque os modelos econômicos dominantes e mobilizando o lado mais consciente da sociedade para repensar o modelo econômico e busca de alternativas mais ambiental e humanamente corretas. A economia solidária tem surgido na pauta desse debate como uma alternativa viável. A questão que se coloca se inscreve no paradoxo decorrente da necessidade de se conciliar condutas sociais solidárias com a competitividade dos mercados que se fundam no individualismo metodológico.
Introdução
Diante da situação caótica de pobreza em que se encontram dois terços da população mundial, sob os auspícios do domínio político e ideológico da mais moderna civilização de todos os tempos, onde o saber científico e a técnica evoluem em ritmo exponencial, paira uma questão que se torna cada dia, mais clara à lógica humanista: qual o destino do planeta e de sua população? De um lado as assimetrias sociais, a xenofobia, o racismo, o fundamentalismo irrompem numa onda de violência que se expande rapidamente dos países pobres para os países ricos; do outro, esgotam-se os recursos naturais pela super-exploração, enquanto degradam-se as condições climáticas numa velocidade maior do que imaginavam os ficcionistas de algumas décadas atrás.
Há anos o mundo assiste a um diálogo de surdos que se reflete nas duas cúpulas mundiais reunidas anualmente em Davos e Porto Alegre. As elites dos países mais ricos do mundo reunidas no Fórum Social Mundial, na Suíça, onde discutem a evolução da economia moderna, as estratégias e políticas institucionais para o crescimento acelerado sob a égide do capitalismo internacional e do lucro de mega-sistemas empresariais. Numa outra perspectiva, o Fórum Social Mundial reuniu em 2005 mais de 150 mil participantes de 135 países para discutir se será possível construir um outro mundo mais humano, com criatividade e diversidade em todos os níveis, com a valorização de iniciativas setoriais, mas também locais, regionais, mundiais; começando pela democratização da ONU, do FMI e do futebol, pela expansão de programas como o Fome Zero.
São dois palcos diferentes, com peças que obedecem a lógicas e roteiros divergentes. Enquanto isso, os milhões de miseráveis no mundo inteiro dependem de alguma convergência que lhes garanta minimamente os direitos universais da pessoa humana que as Nações Unidas transformaram em um dos paradigmas fundamentais da humanidade há 56 anos, mas cuja efetividade continua submetida aos autoritarismos políticos, às injustiças sociais, à perversa concentração de renda que reinam para a maioria da população mundial.
Eis o foco de um debate onde se questionam propostas como a da economia solidária enquanto alternativa para a construção de uma nova civilização, cujo modelo político e econômico estaria comprometido com soluções efetivas para uma tomada de consciência social e de posição política da maioria da população mundial diante da crise sistêmica que atinge a civilização moderna. Uma crise que coloca em xeque o capitalismo, enquanto modelo econômico único, e o mercado, enquanto dispositivo universal de regulação política. Crise que se expressa, antes de tudo, na impossibilidade de solucionar o problema da miséria no mundo, de regular as relações políticas e econômicas entre nações, entre grupos étnicos, entre classes sociais. É uma crise que se expande em todas as direções. O colapso do “Estado do bem estar social” na Europa explode em violência nas periferias urbanas mais pobres na França, na Alemanha, na Bélgica. e também no eldorado dos Estados Unidos da América do Norte, campeões da xenofobia e da violência institucional, que se consideram guardiões da democracia em nome da qual desenvolvem novas formas de guerras colonialistas, sob pretexto de combate ao terrorismo.
Neste mundo moderno e pretensamente democrático, se desenvolve uma repressão cada dia maior sobre as populações de imigrantes, ampliando-se o arbítrio policial, até o limite do assassinato de suspeitos, como ocorreu com um brasileiro morto pela polícia em Londres. São ações justificadas como necessárias nas condições de repressão ao terrorismo.
Esses problemas sociais e políticos estão ainda imbricados às dificuldades ambientais complexas. A temperatura média anual da terra aumentou um grau centígrado no último século. Essa tendência se acelerou nos último 20 anos e continua crescendo, apesar do Protocolo de Kioto, ratificado por mais de 140 países, “garantir” a implementação da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas para redução de 5% das emissões dos gases que causam o efeito estufa, com relação aos níveis registrados em 1990. Os países industrializados, os principais responsáveis pelas emissões dos gases que causam o efeito estufa e aumentam o aquecimento global, deveriam ser os primeiros a tomar medidas para controlar suas emissões. Mas ao contrário do que define o protocolo, a falta de cumprimento dessa convenção pelos países desenvolvidos, resulta numa tendência atual de crescimento. Exemplarmente, os Estados Unidos da América têm se recusado a assinar o Protocolo, apesar de ser o maior poluidor do planeta, responsável por 36% da emissão de gases poluentes.
O geógrafo americano DIAMOND (2005) denuncia que o planeta não sobrevive ao crescimento desmesurado, nem mesmo às custas da mais sofisticada tecnologia. Especulando sobre o futuro, ele imagina que se a China e a Índia atingirem o padrão de consumo da população da Califórnia (USA), o planeta não suportaria a pressão de demanda, triplicando o consumo de água, duplicando o consumo de petróleo e a emissão de gás carbono.
Não há como separar as coisas; a modernidade e o seu modelo de produção e consumo perdulários estão associados à degradação ambiental, à exclusão econômica, às assimetrias sociais, à violência e à repressão policial. O quadro catastrófico do meio ambiente corresponde à degradação social, o Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas informa que quase a metade da população mundial, mais de 2,7 bilhões de pessoas, vive em situação de pobreza, com rendimentos inferiores a dois dólares por dia. A diferença de renda entre os 10% mais pobres e os 10% mais ricos passa de 1 para 11 no inicio do século XX, a 1 para 72 no final do mesmo século. Um ciclo perverso de injustiça social e instabilidade que se expande dos países mais pobres, das classes sociais mais desfavorecidas, para atingir cada dia mais as elites, estejam elas onde estiverem.
Mas o alerta que parte de todos os quadrantes do mundo começa a criar um clima de insegurança generalizado. Até bem pouco tempo, os mais ricos pensavam que essas desigualdades eram naturais e decorriam da capacidade dos mais fortes e dos mais esforçados para aproveitar as oportunidades e dominar os mercados. Nos dias de hoje, a concentração de renda e a redução do poder aquisitivo da população não estão preocupando apenas as vanguardas politizadas da sociedade civil em suas lutas por maior justiça social.
As elites começam a colocar a inclusão econômica em suas pautas e programas sociais. É possível que as pressões e a violência social sobre as elites comecem a inverter suas posições visando expandir a inclusão econômica e o poder de compra das maiorias, viabilizando a expansão dos seus mercados. Neste sentido, os paladinos dos direitos humanos não serão apenas os movimentos sociais, a igreja ou as correntes mais à esquerda do quadro político. Os bancos, as grandes empresas industriais, o agronegócio, as grandes cadeias de distribuição comercial começam a se preocupar com o poder de compra das classes desfavorecidas, considerando a necessidade urgente de uma melhor distribuição de renda, como forma de aumentar as condições objetivas de expansão do mercado e viabilizar o escoamento de uma produção crescente com o aperfeiçoamento tecnológico; a mesma tecnologia que desemprega cada dia mais gente. No Brasil, entre 1990 e 2001, enquanto o crescimento econômico gerou cerca de 15,5 milhões de empregos, a modernização tecnológica foi responsável pelo fechamento de 12,3 milhões de empregos[1]. Apenas para manter os números atuais do desemprego, seria necessário um saldo positivo de cerca de 2,5 milhões de novos empregos, por ano, no Brasil.
É nesse contexto que surge a economia solidária, como uma alternativa mais humana, mais justa e mais sustentável para o futuro da humanidade. Para analisar essa alternativa, no entanto, é precisão ficar atento ao fato de que o capitalismo é suficientemente abrangente e manipulador para incorporar alternativas, ajustá-las e apresentá-las dentro dos seus próprios limites.
Para uma primeira análise nessa direção, chamo a atenção para o fato da economia liberal abrigar duas tendências contraditórias com relação à inclusão e aos direitos sociais. Uma primeira, excludente, é intrínseca à acumulação capitalista correlacionada aos desequilíbrios na concentração de rendas e riquezas resultantes da competição entre agentes com capacidades assimétricas. A segunda, visando compensar esses desequilíbrios, apela para dispositivos reguladores institucionais que agem no sentido inverso das leis de mercado, permitindo a inclusão dos menos aptos, com dois objetivos complementares: a redução das tensões sociais e a ampliação da base econômica. É aí que surge a questão da solidariedade.
O ponto mais polêmico dessa questão é o espaço que essa solidariedade tem na prática capitalista. O que me pergunto nesse ponto é se o individualismo e o utilitarismo que fundamentam a lógica mercadológica teriam alguma coerência com outra forma de regulação social que não a da competição mercadológica e do lucro? Há que se perguntar também, até que ponto o próprio conceito dominante na economia, baseado na escolha racional, se contrapõe e inviabiliza as posturas solidárias de uma economia comprometida com o social? Haverá espaço para uma economia substantiva[2], pautada pelas necessidades fundamentais da pessoa humana e não pelos modelos atuais de produção-consumo?
A intenção desse artigo é, assim, de explorar as contradições entre a economia capitalista e a lógica solidária, procurando entender qual a influência das questões políticas nesse contexto e quais os meios de mediação dessa contradição através da organização social em estruturas compatíveis com as relações de solidariedade nos planos associativos e institucionais.
O domínio da economia
Como primeiro ponto dessa discussão, seria importante debruçar-se sobre as questões conceituais da economia e sobre a relação entre a economia e a política. Primeiramente, proponho se refletir sobre uma perspectiva mais substantiva dessa discussão, partindo do conceito de economia para, em seguida, estabelecer as referências que permitam superar os limites do pensamento hegemônico do sistema capitalista. Penso que o debate sobre economia solidária não pode se limitar ao conceito tradicional de economia que compreende a escolha racional de indivíduos na tomada de decisões sobre o uso de recursos produtivos escassos na produção de bens e serviços visando à satisfação das necessidades humanas. É preciso detalhar mais esse conceito para que possam aparecer suas contradições.
Para abordagem da questão da economia solidária, CAILLÉ (2005) trabalha na perspectiva histórica do conceito de economia baseada em três teses centrais. Primeiramente, compreende a atividade econômica, numa perspectiva substantiva, considerando os meios necessários à obtenção dos bens e qualidades desejadas para a vida humana em contrapartida de um dispêndio de energia, como forma de trabalho socialmente condicionado. Em segundo lugar, considera que, com o fim da auto-produção, essa economia substantiva não mais se distingue da economia de trocas e, gradualmente, a subsistência passa a depender da renda monetária, constituindo o que se conhece hoje como as formas modernas de economia. Os bens e as qualidades desejadas e o próprio trabalho perdem as suas referências substantivas e adquirem equivalências universais através da relação com a moeda, passando a constituir o que Marx chamou de mercadoria.
Finalmente, em terceiro lugar, esse autor considera que, na evolução desse conceito, não se deve confundir o econômico com os processos institucionais que condicionam a economia. Para ele, o econômico em si não é plural, o que pode ter diversidade são os modos de institucionalização do econômico no contexto social. A economia de mercado seria assim, historicamente, um entre outros modos de institucionalização de uma economia, que estaria presente tanto nas relações reguladas pela dádiva, como nos mecanismos distributivistas do Estado e nos mercados livres ou institucionalmente regulados.
Nesta mesma linha, LAVILLE (1994), um dos autores franceses mais preocupados com a economia solidária e com algum conhecimento da realidade brasileira, considera que a evolução histórica da economia se estruturaria em três princípios fundadores. Num primeiro, a economia funciona através de sistemas econômicos baseados na reciprocidade e na solidariedade entre pessoas e grupos. Este tipo de sistema econômico, presente nas sociedades primitivas, pode ainda ser observado na modernidade, no contexto das relações familiares e comunitárias. Um segundo princípio, fundador das relações econômicas, tem um caráter redistributivista e aparece mais claramente nas sociedades hierarquizadas, sob controle centralizado de um chefe ou de uma elite (príncipes, monarcas e imperadores, nobres) a quem pertencem, por direito universal, todos os recursos que constituem o patrimônio da sociedade, inclusive os meios de produção. A esse núcleo central cabe a função distributiva de alocar os recursos para suprir as necessidades dos súditos. Na modernidade, essa função distributiva passa a ser assegurada pelas instituições do Estado, cujo patrimônio resulta dos impostos pagos pela sociedade. O terceiro princípio das relações econômicas é o da troca, que evolui na economia monetária para as relações de mercado, onde a moeda constitui a referência universal de intercâmbio e as regulações econômicas têm como único regulador a lei da oferta e da procura com base na livre iniciativa dos indivíduos.
Gradualmente, com a modernização das estruturas produtivas e a universalização das relações sociais por meio de modelos contratuais, os sistemas econômicos com base na reciprocidade vão cedendo espaço aos dois outros sistemas econômicos, até o limite da polaridade entre individualismo e estadismo, projetando as confrontações entre os modelos capitalista e socialista que disputaram a hegemonia política mundial durante quase todo o século XX. Finalmente, com a falência do socialismo real, o sistema capitalista assume a hegemonia da economia, cuja referência fundamental passa a ser a economia de mercado, de base liberal, individualista e utilitarista.
A função de regulação social da economia termina subsistindo, finalmente, na figura do “Estado do bem estar social”, cada dia mais corroído pelas dificuldades de financiar os segmentos sociais fragilizados pela economia de mercado. Além do mais, os Estados nações têm sido fragilizados pelo crescente domínio de instâncias mundializadas (OMC, FMI) e pelas investidas neoliberais pela minimização do papel das instituições políticas.
Uma outra economia é possível?
Nesse contexto, se colocam dúvidas sobre as possibilidades da construção de uma economia fundada na reciprocidade e na solidariedade. Não obstante autores como CAILLÉ (2005: 227) afirmem que “nos dias de hoje é ilusório se pensar em edificar uma nova economia que não seja a economia de marcado capitalista”, constatam-se evidências práticas e teóricas de outras abordagens econômicas fora dos limites do mercado competitivo, tais como, o cooperativismo, associonismo, o comércio justo, terceiro setor, crédito solidário, fundos rotativos, rendas sociais.
A questão parece mais complexa do que os conceitos envolvidos nessa terminologia, justificando uma reflexão mais detalhada sobre as referências conceituais do fato econômico e de suas relações institucionais.
Para CAILLÉ (2005: 219), embora não se possa falar de uma outra economia, o que poderia justificar essas novas concepções do processo econômico seria o desenvolvimento de novas maneiras de se relacionar com o mundo da economia e de modificar as posições dos agentes envolvidos nas relações de mercado com base numa maior ou menor interferência institucional.
Para esse autor, essas novas formas de atuação nos mercados capitalistas dependeriam de duas abordagens diferentes. Uma primeira, que compreende a criação de coletivos sobre a forma de cooperativa ou de associações de economia solidária, cuja eficácia econômica dependeria fundamentalmente da mobilização dos sentimentos de lealdade, solidariedade e de amizade. Neste sentido, o processo da economia solidária liberaria as energias que permitem ao coletivo se beneficiar do trabalho gratuito (ou a custo reduzido, com relação ao mercado) dos seus membros, criando internamente um sentimento de endividamento mútuo positivo (todos têm um sentimento de ganhar com a atividade de todos). Esta seria, então, a base do diferencial competitivo da economia solidária, como na pequena empresa familiar, artesanal ou agrícola e, até mesmo, nas cooperativas, viabilizando sua atuação em nichos de mercado onde a empresa capitalista, ou o Estado, não tem eficácia. A economia solidária pode não ser assim economicamente competitiva nas disputas pela maioria dos mercados, nem poderia se financiar às custas dos impostos pagos pela sociedade, mas pode ser eficiente unicamente por colocar em comum o sentimento do dom e da gratuidade.
Numa segunda abordagem, é possível ver que essa economia solidária e sua capacidade competitiva se constituem, fundamentalmente, com base em participações economicamente desinteressadas dos seus membros, motivada, sobretudo, pela idealização de outras formas de riqueza (não mercantis) que se consubstanciam nas relações interpessoais, nos laços familiares e de companheirismo, no senso de justiça e na solidariedade no social.
Não é possível deixar de observar na confrontação dessas duas abordagens, uma grande fragilidade da economia solidária que reflete o caráter contraditório entre a lógica competitiva do posicionamento mercadológico da economia solidária e a base de sustentação, afetiva e moral.
Na modernidade, as experiências de economia solidária remontam ao século XIX com os falanstérios de Charles Fourrier (1772-1830) e os familistérios de Jean-Baptiste Godin (1817-1888) cujas utopias foram limitadas pelas contradições entre uma lógica econômica solidária e a política individualista da economia de mercado. Para a FREITAG (2002), a essência do projeto de Godin que investiu seus recursos pessoais na construção de um familistério em Guise (na França), consistiu em abdicar dos próprios interesses capitalistas e passar os lucros das atividades produtivas aos operários, garantindo-lhes condições de vida dignas e confortáveis. Apesar do grande sucesso comercial da produção das indústrias Godin, o familistério não conseguiu superar seus próprios limites e expandir a única experiência socialista bem sucedida na expressão de Friederich Engels (apud FREITAG). O familistério, transformado em patrimônio da Humanidade, abriga ainda hoje 300 famílias, com apoio da União Européia.
Por sua vez, os falanstérios se constituíram como unidades de convivência e produção coletiva, fundados em pactos de solidariedade entre seus membros, mas todos tiveram vida curta. Segundo ANZIEU e MARTIN (1973:37), o fator de maior sucesso dessa experiência que prosperou, sobretudo nos Estados Unidos, a partir de 1840, foi também a causa do seu fracasso. Os melhores falansterianos, que conseguiram uma boa formação tecnológica, econômica e psicológica, passaram a ser mais valorizados no mercado de trabalho externo aos falanstérios, e acabaram abandonando seus postos para ganhar mais em empresas privadas. Outros, traíram seus próprios companheiros, ao se aproveitar de conflitos internos para provocar a dissolução dos falanstérios e assumir a direção em benefício próprio.
As dificuldades de mediar as contradições entre as formas de expressão da solidariedade coletiva fundada no “Dom”, como define Caillé, e a lógica utilitarista- individualista das economias de mercado, tem também uma história de sucessos, na qual as cooperativas jogam um papel importante. Para Pagés, “a cooperativa é uma instituição intermediária entre o Estado, o mercado, os organismos de crédito; ela se interpõe entre a sociedade capitalista e as coletividades de pescadores” (1992: 10). Para esse autor, que analisou as diferenças entre uma empresa multinacional e uma cooperativa de pescadores, o papel da cooperativa é de gerir as contradições resultantes do desenvolvimento capitalista, atenuando os seus efeitos e evitando que eles resultem em conflitos abertos. De fato, nesse contexto, as cooperativas de pescadores são mediações às contradições econômicas entre as necessidades da modernização capitalista e a manutenção de setor de baixa produtividade, de baixo investimento e de mão de obra barata. Assim, transfere-se para os pescadores uma parte significativa dos sacrifícios necessários à nova dinâmica capitalista. A cooperativa serve ainda para mediar contradições políticas evitando inquietações e conflitos e mantendo a paz social. São ainda mediadas as contradições ideológicas e psicológicas, entre estilo de vida coletiva dos pescadores e valores individualistas da produção capitalista, entre o desejo de autonomia dos pescadores e o desejo de serem protegidos, assistidos pelas autoridades sociais. Como resultado dessas mediações, essas duas culturas podem trabalhar juntas, complementando-se, sem que essas populações de estilos de vida mais primitivos sejam violentadas por padrões culturais e relações de trabalho exógenoa; sem que a capacidade produtiva dessas populações e suas capacidade de consumo sejam excluídas de uma economia que se moderniza.
O exemplo mais bem acabado deste quadro cooperativo é o da cooperativa espanhola “Mondragon Corporacion Cooperativa”[3], fundada no País Basco por um grupo de operários com apoio de um padre católico, nos anos cinqüenta. Hoje é uma corporação com cerca de 70 mil empregados, 81% dos quais são sócios cooperados, com um volume de vendas em 2004 superior a 10 bilhões de dólares. Além de operar um Banco comercial, a Mondragon atua em setores tão diversos como ensino e pesquisa, construção civil, produtos agroalimentares, indústria de base, eletrodomésticos, indústria automotiva, entre outros. Apesar das dimensões gigantescas, essa cooperativa ainda se rege por princípios éticos que associam a produtividade, característica de um desempenho empresarial altamente competitivo, à identidade coletiva, à solidariedade entre os pares, à primazia do trabalho sobre o capital, à responsabilidade social. Eis que se definem em Modragon as bases ideológicas, identitárias e normativas da constituição de uma economia solidária que supere os limites das relações individuais para se institucionalizarem, mesmo que seja às custas de um grande investimento no plano psicológico, que leve ao desenvolvimento de organizadores sociais, com profundidade e sustentabilidade.
O movimento associativo no Brasil
Embora no Brasil as cooperativas ainda tenham uma participação pequena na economia (não superam 6% do PIB[4]), a experiência cooperativista tem sido muito bem sucedida, sobretudo em países como França, Itália e Espanha, onde subsistem sistemas produtivos mais arraigados a culturas singulares de bases locais, pouco adaptadas aos padrões da modernidade e da racionalidade instrumental da sociedade industrial e pós-industrial.
As minhas pesquisas em assentamentos da reforma agrária reforçam essa idéia de uma participação incipiente das práticas associacionistas entre as famílias assentadas, não apenas da organização cooperativa, mas também de outras formas associativas, conforme demonstram os números do I Censo de Reforma Agrária no Brasil[5], apresentados a seguir.
associativismo nos projetos de Reforma Agrária
Observe-se que, enquanto é significativa a presença das formas de associação ligadas ao projeto de assentamento (associação) ou à igreja, as formas autônomas de organização, expressas pela presença de cooperativas e sindicatos relacionados com a produção e com a comercialização, têm números pouco significativos.
Pesquisa realizada em 2002, pelo IBGE[6], em conjunto com IPEA, ABONG e GIFE, registra a existência de 276 mil entidades sem fins lucrativos, empregando mais de um milhão e meio de pessoas com salários que superavam, naquele ano, 17 milhões de reais.
AVRITZER (1997) já havia constatado que, apesar da baixa tradição associativa, o Brasil, como outros países na América Latina, tinha experimentado um incremento do associativismo, medido pelo crescimento do número de associações civis, como sinal de evolução política da sociedade. FERREIRA (1999) contesta esse argumento considerando que, apesar do crescimento do número de organizações associativas, o incremento de afiliações foi inferior a 5%. Considera ainda que muitas adesões a essas instituições, em particular aos sindicatos, não sinalizam uma evolução política da sociedade porque se fundam em razões puramente instrumentais e assistencialistas como o acesso aos serviços de assistência médica e dentária, assistência jurídica e reivindicações salariais.
O autor argumenta ainda que as assimetrias sociais associadas ao crescimento econômico das últimas décadas se refletem em níveis de participação diferenciados segundo o status sócio-econômico da população: “o lado poliárquico participa, mas o Brasil pobre não atua na política”.
Essa constatação das dificuldades associativas da nossa sociedade e, em particular, dos segmentos sociais mais excluídos do atual modelo econômico, representa, de fato, uma fragilidade a ser superada para viabilizar o projeto de economia solidária para o Brasil. Para se compreender esse fenômeno seria necessário ir com mais profundidade às raízes dos processos que estão por trás dessa tendência dissociativa que afetam justamente as camadas mais carentes da sociedade, para as quais o associativismo poderia fazer a diferença.
Nessa perspectiva, CHANIAL (2005) entende que colocar o foco das motivações associativas numa lógica utilitarista leva a paradoxos que compromete a própria ação associativa. É o caso, como já me referi anteriormente, de querer mobilizar as pessoas para aderir ao associacionismo justificando as suas vantagens competitivas com base na diferença de custos que resulta da redução do lucro ou da dádiva do associado. Para este autor, dificilmente as pessoas se motivam para uma ação solidária com base em um argumento utilitarista. Somente uma lógica que compreenda a solidariedade como um princípio independente fundador da ação coletiva, distinto da ação instrumental, poderia explicar a originalidade do que se exprime na prática associativa.
O que se coloca na pauta dessa discussão é, assim, o fundamento das motivações associativas que possam permitir a construção de práticas fundadas na solidariedade e não na razão instrumental do cálculo racional. Neste sentido, a economia solidária é a antítese da economia capitalista fundada no individualismo metodológico, na negação da solidariedade coletiva como base das relações sociais.
Os organizadores sociais
Para compreender a complexidade desse paradoxo e explorar as saídas possíveis para a economia solidária, procurei abordar teoricamente essa questão com base nos resultados das minhas pesquisas sobre capital social nos assentamentos da Reforma Agrária. Naquele trabalho, procurei fazer uma análise mais detalhada das motivações para a vida associativa, buscando localizar nas práticas sociais, dispositivos e processos que contribuem para a organização coletiva. Comecei essa tarefa procurando identificar as motivações individuais e coletivas que estruturam as relações comunitárias fundadas em lógicas tão dispares quanto a tradição, a amizade, a solidariedade e o interesse, utilitário.
A preocupação central foi tentar localizar, nas relações entre os integrantes do coletivo e o próprio coletivo, os processos e dispositivos que funcionam como aglutinadores para as ações associativas. Trabalhei aí com o conceito de organizador social que, na linguagem de ANZIEU (1993, p.179), designa dispositivos e roteiros sociais que orientam a ação associativa.
Considerando os processos associativos que analisei nos assentamentos, verifiquei que os dispositivos que mobilizam para a ação coletiva podem ser ordenados em três tipos diferenciados, ocorrendo simultaneamente com maior ou menor prevalência de um ou de outro. Os mais evidentes de serem identificados são os organizadores do tipo instrumental, nos quais predomina a racionalidade e os interesses individuais. Num outro nível estão os organizadores simbólicos que contribuem para o desenvolvimento de identidades coletivas a partir de referências de pertencimento relacionadas à formação do espírito de corpo, como ocorre na família, na religião, no regionalismo e em muitas outras expressões corporativas. Finalmente, num nível mais profundo de organizadores estão os do tipo imaginário, que operam no plano inconsciente projetando e introjetando relações afetivas fundadoras de identidade associativa na relação com um líder e na evolução do coletivo como dispositivo de auto-regulação.
No limiar da projeção desses organizadores sobre as formas associativas que está em discussão, trabalhei com o conceito de sujeitos sociais definidos como unidades postuladas por coletivos auto-regulados, exprimindo-se pelo reconhecimento recíproco e por sentimento de inclusão (BARUS-MICHEL 1987: 27). Ao contrário do sujeito individual, o sujeito social não se define a partir de um substrato orgânico que lhe garantiria a integridade. Na definição dessa autora, essa integridade (que é o que mais interessa ao propósito deste artigo) resulta da compreensão de que a unidade coletiva é uma construção baseada, fundamentalmente, em laços afetivos e de solidariedade recíproca. Em outras palavras, a racionalidade instrumental não teria uma função fundamental na construção do associativismo solidário que se fundamenta, sobretudo, em organizadores imaginários e simbólicos.
De fato, como pude observar na formação dos coletivos por mim estudados, as motivações derivadas de organizadores instrumentais podem ser bastante eficientes para arregimentar forças voltadas para ações de curto prazo com objetivos e metas individualistas e racionalmente definidas (a luta para ter acesso à terra, ao crédito, ao financiamento para construção de uma casa). Esse tipo de organizador é coerente com a lógica utilitarista da decisão racional que caracteriza as transações competitivas nas relações de mercado; é, portanto, mais apropriado às organizações empresariais do que às formas de associativismo solidário.
Já os organizadores simbólicos, que se constituem através de referências enraizadas na história das relações sociais, demonstram ter mais consistência e serem mais efetivos para organizar e desenvolver projetos coletivos centrados na solidariedade do que para estabelecer estratégias de gestão racional nas organizações empresariais. Os processos organizacionais fundados em organizadores simbólicos são mais difíceis e gastam mais tempo para se desenvolver e para se consolidar do que os que se baseiam em organizadores instrumentais. Mas, ao contrário dos organizadores instrumentais, demonstram ter mais eficácia e mais sustentabilidade, sobretudo para atividades como as que se pretende na economia solidária.
Finalmente, o terceiro tipo de organizador que opera no imaginário se instala em estágios mais avançados no desenvolvimento de coletivos fundados nas relações de reciprocidade. A diferença com os outros tipos de organizadores é, fundamentalmente, de profundidade. Chamo a atenção para o fato de que, a forma como os coletivos sociais articulam o imaginário na sua organização, até chegar a um estágio mais elevado de auto-regulação, depende de investimentos importantes numa práxis que privilegia a autonomia, o espírito crítico e os compromissos recíprocos. É justamente nesse estágio de organização que se constituem as formas mais consolidadas de solidariedade e onde pode evoluir uma economia solidária.
Enquanto as formas instrumentais de organização obedecem a uma lógica utilitária e os organizadores simbólicos se enraízam em formas tradicionais de reprodução de relações e modelos pré-existentes, os organizadores imaginários apontam para a constituição de coletivos com mais autonomia e mais poder de transformação social, na direção a que me referi no início desse artigo. Uma capacidade de transformação que começa na própria evolução de cada coletivo onde os arranjos e acordos sociais precisam ser permanentemente construídos e reconstruídos, em negociações permanentes que se fundam na consciência social e na autonomia coletiva[7]. Essas referências à consciência e à autonomia que estão na base da constituição e do desenvolvimento de sujeitos sociais, são assim fundadoras da democracia local, do respeito à individualidade, sem cair no individualismo; da regulação pelo coletivo, sem os riscos da submissão incondicional à “vontade da maioria”, freqüentemente manipulada por grupos hegemônicos. È no bojo desses sujeitos sociais que se constroem as bases de uma solidariedade onde se estruturaria um novo modelo de economia; a economia solidária.
Sem pretender estabelecer aqui uma conclusão sobre essas questões, proponho uma hipótese de partida para aprofundar o debate: a economia solidária só será uma alternativa aos modelos de capitalismo responsáveis pelas assimetrias sociais e pela degradação progressiva da vida na terra, se as bases de sua solidariedade estiverem fortemente assentadas em relações associativas fundadas numa lógica diferenciada do utilitarismo e do individualismo metodológico. Neste sentido, a ruptura desejada não se produzirá num plano hibrido onde se misturem os ideais de solidariedade com os modelos liberais de regulação econômica-política e os métodos puramente racionais de tomada de decisão. Como corolário dessa hipótese, considero que a evolução de núcleos de economia solidária dependem dos fundamentos da organização coletiva com relação aos organizadores sociais envolvidos.
Para concluir, penso que a análise dos processos comunitários através do estudo dos organizadores sociais, da articulação e da hierarquia entre eles, pode ajudar a marcar a evolução do processo democrático e do nível de autonomia individual e coletivo na organização da economia solidária. De alguma maneira, vejo que esse tipo de análise vai de encontro à preocupação dos movimentos sociais de investir, cada vez mais, em métodos consistentes de organização social, com mais autonomia local e sentimentos de pertencimento mais profundos e duráveis. Considero ainda que esse tipo de investimento encontra seus limites na dificuldade de lidar com organizadores mais complexos e, em particular, com os organizadores imaginários, indispensáveis à formação de sujeitos sociais autônomos e com maior capacidade de luta. Eis um dos impasses para se constituirem núcleos de economia solidária que sejam mais radicais quanto aos fundamentos da solidariedade.
É evidente que a tendência tradicional dos movimentos associacionistas investirem na formação e capacitação de quadros e de líderes para a luta social funciona, ao mesmo tempo, como um grande potencial e como um grande limite para o desenvolvimento da organização comunitária e da ampliação de lutas para consolidar o processo democrático. Como potencial, porque esse investimento resulta numa grande capacidade de mobilização política, engajando grandes contingentes na luta por terra, por teto, por inclusão social. Limite, porque o fortalecimento das posições de líderes diferenciados da maioria da população como condutores das lutas de interesses do coletivo, termina fragilizando a organização social pela dependência com relação ao líder.
Nessa direção, pude ver como a contestação das lideranças ligadas aos movimentos sociais nos assentamentos da reforma agrária, que poderia ser vista como um importante estágio da evolução da consciência social e da autonomia dos assentados, é sempre interpretada como uma reação negativa e desagregadora e, como tal, combatida em nome da harmonia. Se a evolução desses movimentos de contestação das lideranças pudesse ser vista e tratada de uma maneira mais dialética, como conflito criativo, permitiria a evolução dos coletivos até um estágio de maior autonomia, onde o grupo auto-regulado poderia instalar um processo de desenvolvimento mais consistente com os ideais preconizados pelos movimentos sociais.
À falta de um maior aprofundamento na análise desses processos, o desenvolvimento de estratégias e metodologias participativas fundadas numa evolução permanente do grupo como sujeito social seria um avanço importante. O maior desenvolvimento das comunidades e grupos locais teria repercussões na evolução da democracia participativa e, em partícula, na evolução da economia solidária como uma alternativa aos atuais modelos econômicos.
Bibliografia
ANZIEU, Didier e MARTIN, Jacques-Ives. Les dynamiques des groupes restreints. Paris, PUF. 1973
ANZIEU, Didier. Le Groupe et l’Inconscient. Paris, Dunod, 1984. 234 p.
AVRITZER, Leonardo. (1997), “Um desenho institucional para o novo associativismo”. Lua Nova — Revista de Cultura Política, 39: 149174.
BARUS-MICHEL, Jacqueline. Le Sujet Social. Étude de Psychologie Sociale Clinique. Paris, Dunod, 1987. 209p.
CAILLÉ, Alain. Dé-penser l’économique. Paris, La découverte MAUSS. 2005
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KUPFER, David e FREITAS, Fabio. Análise estrutural da variação do emprego no Brasil entre 1990 e 2001. Boletim de Conjuntura do IE/UFRJ, março de 2004
LAVILLE. J-L. L’Économie solidaire. Une perspective internationale. Paris. Desclée de Brouwer. 1994
[1] KUPFER, David e FREITAS, Fabio. Análise estrutural da variação do emprego no Brasil entre 1990 e 2001. Boletim de Conjuntura do IE/UFRJ, março de 2004
[2] Este conceito para Karl Polanyi se refere à interação entre o homem e a natureza que permite a obtenção dos meios materiais de satisfação das suas necessidades (Polanyi, Karl. The livelihood of man. London, Academic Press. 1977)
[3] http://www.mondragon.mcc.es/esp/index.asp
[4] Segundo os dados da OCB para dezembro do 2003
[5] Fonte: I Censo da Reforma Agrária de 1996 MDA
[6] IBGE. As Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil 2002 – Rio de Janeiro 2004
[7] Os conceitos de autonomia e de consciência social compreendidos no sentido que é atribuído por CASTORIADIS (1975 ) se articulam com o conceito de sujeito social anteriormente tratado.
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O compromisso central da mobilização e formação de liderança é com a autonomia do sujeito; uma autonomia, que se diferencia, ao mesmo tempo, do individualismo descomprometido com o social e da alienação do sujeito sob as determinações das estruturas instituídas
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