O Liberalismo – Gustavo Krause
MÓDULO I – Conceito Básicos de Política e Cidadania
EMENTA: Dar ênfase à necessidade da política como elemento constitutivo e indutor da evolução das sociedades, utilizando exemplos históricos bem como enfocar a noção conceitual e prática da cidadania desde sua formação original aos nossos dias.
Política e Cidadania são conceitos correlatos e fundamentais para o entendimento da evolução e do funcionamento da nossa sociedade.
Comecemos pela Política.
A Política tem por base a “pluralidade de homens e trata da convivência dos diferentes” [1].
A pluralidade de homens e a convivência dos diferentes, por sua vez, exigem regras de convivência desde a organização social fundada em laços biológicos – a família – até a forma mais complexa de organização – o Estado.
As regras de convivência asseguram a passagem de um estado de barbárie para um estágio mais avançado que é o da civilização.
De outra parte, as regras de convivência são, por excelência, mecanismos que impedem a “guerra de todos com todos” ao impor limites ao exercício do poder em cada organização que, no conjunto, formam a sociedade humana.
A esta altura, é possível tirar as primeiras conclusões: onde há sociedade, há poder; onde está o poder, está a Política; o exercício da Política se faz mediante regras.
De forma mais ampla, é correto afirmar que a Política é a ciência e arte do poder organizado em todas as comunidades e, de forma mais estrita, que a Política é a ciência da governação dos Estados.
Em ambos os casos, ou em qualquer tentativa de se definir a Política, há um ponto em comum: a necessidade da Política.
Todavia, a compreensão da Política no seu sentido mais estrito e, por consequência, a aceitação da Política como uma necessidade social, leva necessariamente a entender o que vem a ser o poder e as formas como o poder se manifesta.
Há várias formas de poder do homem sobre o homem: o poder econômico, o poder das idéias (ou do conhecimento) e o poder político. Em todas as formas, há um elemento indissociável: a desigualdade nas relações. No caso do poder econômico, a divisão ocorre entre ricos e pobres; no caso do poder ideológico, sábios e ignorantes; no caso do poder político, fortes e fracos, os que mandam e os que obedecem.
Dentre eles, somente o poder político está legitimado para usar a coação na obtenção dos efeitos desejados.
Portanto, “o que caracteriza o poder político é a exclusividade do uso da força em relação à totalidade dos grupos que atuam num determinado contexto social, exclusividade que é o resultado de um processo que se desenvolve em toda sociedade organizada, no sentido de monopolização da posse e do uso dos meios com que se pode exercer a coação física”.[2]
Complementando a definição anterior, é imprescindível se recorrer ao fundamento da teoria moderna do Estado, expresso no conceito clássico segundo o qual: “Por Estado se há de entender uma empresa institucional de caráter político onde o aparelho administrativo leva adiante, em certa medida e com êxito, a pretensão do monopólio da legítima coerção física, com vistas ao cumprimento da lei”.[3]
Dito isto, voltemos à necessidade da Política.
Tanto para os que defendem um fim mínimo da Política: a ordem pública nas relações internas e a defesa da integridade nacional nas relações de um Estado com os outros Estados; quanto para os que defendem vários fins (viver bem, o bem comum, a justiça, felicidade, liberdade, igualdade), a política é uma necessidade existencial.
A propósito, esta visão finalística mais ampla remonta às origens gregas da palavra Política e tem como núcleo o pensamento de Aristóteles.
A origem etimológica é polis que significa tudo que se refere à cidade e, consequentemente, o que é urbano, civil, público, e o termo expandiu-se graças à influência exercida pela grande obra do filósofo grego, intitulada Política. Nela, o homem, definido como um animal político, vive numa cidade em associação com outros homens, exercendo a atividade política cujo fim não é viver, mas viver bem.
Em síntese, a política ocorre em todas as organizações, empresas, sindicatos, igrejas, organizações sociais e, em todas, diz respeito ao poder, ao processo de tomada de decisões e às formas de solução dos conflitos. Na sua parte mais visível e que desperta maior interesse dos pensadores, cientistas, mídia e dos cidadãos, a política refere-se ao Estado e organismos públicos cujas missões institucionais afetam a vida de todos que estão sob suas jurisdições.
Na atualidade, a atividade política, no Brasil e no mundo, tem sofrido um grave desgaste por conta de generalizado descrédito. A Política com P maiúsculo cedeu lugar a um tipo de “política” descomprometida com a Res Publica (a coisa pública) e contaminada por interesses menores. Este fenômeno gera um sentimento de desilusão nas pessoas e desacredita a Política como atividade necessária e fundamental para o aperfeiçoamento da sociedade. Em consequência, induz a perigosas generalizações do tipo “é tudo farinha do mesmo saco” ou “todo político calça quarenta” e, na esteira deste desencanto, abre caminho para o personalismo, para o populismo, para o autoritarismo, para a corrupção dos costumes, vitimando a cidadania ativa, vigilante e consciente.
Daí, a correlação conceitual e prática entre política e cidadania.
Ambas se identificam na origem histórica e devem caminhar juntas na evolução do processo político.
E na origem histórica, as raízes etimológicas – polis, em grego e civitas, em latim – se unem na definição de um estilo peculiar do relacionamento humano.
Para além da Grécia e de Roma, as ideias de cidadania floresceram em diversos períodos históricos – os burgos e as cidades renascentistas – e a conquista do status de cidadão tem na sua dinâmica uma luta imemorial do indivíduo, do súdito, dos escravos e de toda sorte de excluídos, contra o uso e o abuso poder dominador e opressivo.
No roteiro em que ideias puseram homens em luta, ampliando a consciência humana em relação ao fenômeno da igualdade e incorporando interesses emergentes e novas classes, uma cadeia de eventos assegurou significativos avanços no reconhecimento da cidadania: a revolução inglesa (1640-1688), a americana (1776), a francesa (1789), revoluções políticas que estavam associadas aos efeitos de outro tipo de revolução, a revolução industrial, ou seja, uma profunda alteração no modo de produção que mudou radicalmente a economia, a sociedade e as instituições.
A despeito de suas peculiaridades, as três revoluções têm em comum o deslocamento do eixo econômico do campo para a cidade, a emergência de novas classes sociais e estatutos fundadores dos direitos da cidadania (o Bill of Rights, a Declaração de Independência e a Constituição Americana e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão).
Modernamente, a cidadania tem um caráter próprio e comporta duas noções: a de cidadania formal, universalmente, definida pelo pertencimento da pessoa a um estado-nação; a cidadania substantiva que se define pelo conjunto de direitos civis, políticos e sociais atribuídos às pessoas.
Sobre o assunto, há uma referência obrigatória que é o livro clássico Cidadania, classe social e status de autoria de T.H. Marshall (Rio de Janeiro: J. Zahar, 1967), professor de sociologia da Universidade de Londres.
Estudioso do processo de formação da cidadania, fenômeno que na sua terra natal, a Inglaterra, teve uma evolução linear, Marshall distingue três fases, atribuindo a cada século um tipo de direito constitutivo da cidadania: no século XVIII, os direitos civis; no século XIX, os direitos políticos; no século XX, os direitos sociais.
Para ele, os direitos civis são a chave do mundo moderno (sujeição e igualdade perante a lei); os direitos políticos fortaleciam a efetividade dos direitos civis na medida em que garantiam a participação dos cidadãos na vida política, assegurando a universalização do voto e um conjunto de mecanismos de vigilância e controle ao exercício do poder; por sua vez, os direitos sociais acrescentaram ao status da cidadania os instrumentos capazes de garantir às pessoas uma participação nos benéficos gerados pelo progresso.
Dois adendos precisam ser feitos para ajudar na compreensão do processo evolutivo descrito por Marshall cuja formulação foi bastante influenciada pela singular experiência inglesa: primeiro, o estudo comparativo das experiências internacionais demonstra que a formação da cidadania não obedeceu a esta sequência ordenada e metódica, mesmo onde a cidadania atingiu grandes avanços; segundo, as conquistas, em todos os campos da vida social, resultaram de pressões organizadas até movimentos revolucionários e lutas sangrentas.
De outra parte, no mundo globalizado, há uma cidadania em formação que é a “cidadania mundial” ou a “ecocidadania” que ultrapassa as fronteiras do estado-nação na direção da sociedade-mundo, bem como, direitos de última geração a serem acrescidos à cidadania contemporânea, ou seja, direitos que reconheçam as diferenças e protejam as minorias, os mais fracos no jogo da competição (negros, mulheres, homossexuais, crianças e adolescentes, idosos, portadores de deficiências); direitos a um meio ambiente saudável e direitos que imponham limites éticos aos avanços da biotecnologia.
Para completar o texto cabem sucintas considerações sobre a formação da cidadania brasileira e, neste sentido, é de grande valia consultar o livro de autoria de José Murilo de Carvalho, Cidadania no Brasil – O longo caminho em que o autor divide o percurso de 178 anos nos seguintes períodos: Os primeiros passos (1822-1930); Marcha acelerada (1930-1964); Passo atrás, passo adiante (1964-1985); A cidadania após a redemocratização; A cidadania na encruzilhada (conclusão) (Rio e Janeiro: Civilização Brasileira, 2001).
Com efeito, a palavra cidadania ganhou uma força e um significado especial a partir do longo e gradual processo de transição do regime autoritário para o regime democrático.
Cidadania caiu na boca do povo e qualificou a Constituição de 1988, marco institucional da era democrática e que foi chamada pelo Deputado Ulysses Guimarães de “Constituição Cidadã”.
Na retórica política, cidadania substituiu o próprio povo.
De fato, a Constituição Brasileira, embora polêmica no conteúdo e na forma, incorporou avanços no que diz respeito à cidadania e estes avanços foram recebidos com entusiasmo.
Havia uma crença generalizada de que a democratização das instituições traria, como ressalta o historiador José Murilo de Carvalho, “a felicidade nacional”.
De fato, as nações prósperas, estáveis, com distribuição equitativa de renda e que, por isto, proporciona um adequado nível de bem-estar aos cidadãos, são democracias sólidas. Donde, é correto afirmar que democracia é gênero de primeira necessidade para que se construa uma nação desenvolvida, mas não é tudo e nem opera efeitos mágicos e imediatos.
No Brasil, respira-se um clima de liberdade; o voto, instrumento de participação política nunca foi tão difundido, constituindo, hoje, no país, um colégio eleitoral de mais de 100 milhões de brasileiros; bem ou mal, as instituições funcionam; as eleições, apesar das distorções do sistema político, acontecem periodicamente, sob a vigilante atuação da Justiça Eleitoral e, graças aos avanços tecnológicos, estão, em princípio, protegidas dos expedientes fraudulentos que, durante muitos anos, foi a pedra de toque dos nossos pleitos.
Todavia, o exercício de certos direitos não gera automaticamente o gozo de outros que dizem respeito às questões básicas não providas pelas políticas públicas. Sem falar, por consequência, na persistente desigualdade no acesso aos benefícios do progresso.
Saindo da esfera da cidadania formal, definida pelo nosso sistema legal, é procedente afirmar que, no Brasil real, existem o não-cidadão, o excluído, o miserável, na forma da lei e cidadãos de primeira, segunda e terceira classe, de acordo com a situação em que são colocados no ranking da distribuição dos direitos da cidadania.
Dito de outra forma e parodiando a máxima da Revolução dos bichos de George Orwell: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”.
É na prática, no cotidiano das pessoas que estas diferenças ofendem frontalmente o princípio da igualdade de todos perante a lei, consagrado no artigo 5º da Constituição Brasileira.
Por que este fenômeno subsiste teimosamente na sociedade brasileira?
A resposta é complexa e exigiria um aprofundamento incompatível com o objetivo do texto.
Todavia, algumas pistas podem ajudar uma reflexão mais apurada.
Se a gente olhar, mesmo superficialmente, para a formação social, econômica e política do Brasil, é possível identificar alguns fatores relevantes que ajudam na compreensão do fenômeno, entre os quais cabe destacar:
+ O patriarcalismo como a base da família brasileira em que o pai, o chefe, era autoridade suprema e ao qual era devotada irrestrita obediência da mulher, dos filhos e dos agregados, especialmente, na sociedade agrária.
+ O escravismo como ideologia e prática adotada nas relações entre o senhor e “a coisa”, alicerce sobre o qual se ergueu a economia brasileira associada ao latifúndio e à monocultura. Importante realçar que o Brasil foi o último país de tradição cristã e ocidental a abolir a escravatura. É possível constatar que a profecia de Nabuco realizou-se quando ele previra que difícil não era abolir a escravidão, mas remover a obra da escravidão. A obra permanece entranhada na alma brasileira e disfarçada sob a forma de comportamentos preconceituosos.
+ O autoritarismo associado a vários “ismos”, tais como, o paternalismo, personalismo, o caudilhismo, o messianismo, o clientelismo, o assistencialismo, o familismo, o nepotismo, o patrimonialismo, que permeiam e conformam a cultura política antidemocrática e anticidadã. Estes vícios se traduzem em expressões consagradas pelo uso repetido, tornando-se ditos populares e verdades sociológicas, entre os quais, estão “Sabe com quem está falando?”; “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”; “Para os amigos, pão; para os inimigos, pau”; ou, “Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”.
Em síntese: o longo caminho percorrido significa que ainda estamos no meio do caminho. Há muito chão pela frente e uma “encruzilhada” a ser ultrapassada. Nesta encruzilhada o grande desafio é promover o encontro entre a política e a cidadania sem perder de vista o grande paradoxo: “os eleitores desprezam os políticos, mas continuam votando neles na esperança de benefícios pessoais”.
[1] Arendt, Hannah. O que é política?; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.21
[2] Bobbio, Norberto. Dicionário de política; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983, p. 956
[3] Ibidem.
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