Professor de filosofia, autor de livros de filosofia e de autoajuda filosófica, o cronista Leandro Karnal disse uma vez (entrevista ao Estadão, 13/06/2020) que estava lendo um livro de psicologia de Jonathan Haidt que o teria feito (abro aspas) “entender porque alguém olha para um candidato, vê todos os defeitos do mundo nele e vota nele mesmo assim”. Deve haver muita elaboração de psicanálise para tal comportamento supostamente irracional. A explicação que tenho para esta possibilidade é bem mais simples, e nem precisa que qualquer candidato tenha “todos os defeitos do mundo”, basta ter “alguns defeitos”.

É suficiente que, entre vários candidatos, haja um que eu rejeite mais que qualquer outro e que assim, para que não se eleja quem avalio o pior de todos, eu considere mais garantido votar no candidato no qual enxergo defeitos, mas que me garante a derrota do candidato que mais rejeito.

Quatro meses atrás, Pedro Malan escreveu, em ”O quarto inverno: novo salto no escuro?” (O Estado de São Paulo, 12/06/2022, p.A4): “Como diz Marcus A. Mello, ao que parece, AS PRÓXIMAS ELEIÇÕES SERÃO DECIDIDAS PELO ELEITOR QUE ‘VOTARÁ EM QUEM NÃO APROVA PARA EVITAR QUEM REJEITA MAIS’.”  (Destaque meu.) Quatro meses depois, parece que assim será. Não é que todo mundo vai votar em quem não aprova, e sim, que o resultado será determinado por uma parte dos eleitores que deixará de votar em seu candidato preferido para votar em alguém que, apesar de seus defeitos, garante melhor a derrota de quem rejeita mais. E que isso caracteriza a eleição: não chega a ser um plebiscito, mas algo de plebiscitária tem.  Nada de irracional nisso.

É o que se chama de “voto útil” ou voto estratégico. Não é nenhuma jabuticaba e acontece, em diferentes formas, em muitos países. Significa, essencialmente, no sistema eleitoral do Brasil, se minha preferência primeira não tem chance de vitória, votar em alguém para derrotar o candidato que mais rejeito. Voto útil ou estratégico é algo mais complicado e difícil de calcular num sistema em que a votação decide tanto a representação partidária quanto os nomes individuais, em paralelo, como é no parlamentarismo da Alemanha. Mas existe também nesse tipo de eleição. É uma opção legítima do eleitor individual e é democrática, na medida em que é o eleitor que decide votar dessa maneira. E é bom lembrar que o fenômeno existe não só numa das pontas do espectro político.

Voto útil não é “irracional”, tem a sua lógica de argumentação. A opção pelo voto útil pode ser a de “vamos ser realistas”, implica reconhecer fatos que você não criou, captar uma realidade que você de imediato não conseguiu alterar (como a polarização), mas vai enfrentar “estrategicamente”. Não é correto classificar o voto útil pejorativamente de “Realpolitik”, pois não é mera aceitação de uma realidade sem considerar valores e objetivos políticos. Simplesmente há valores que precisam ser defendidos prioritariamente, como a democracia, sem a qual ficam sem defesa outros pontos programáticos.

Aqui e agora a hipótese do voto útil existe essencialmente para o primeiro turno, para o qual há inusitada fragmentação entre 11 candidatos: L, B, C, T, S, F, SM, VL, E, K, P. Digamos que o que mais me interessa politicamente é derrotar B, este é meu objetivo maior, o objetivo que mais importa para o futuro do país. Caso eu tenha a convicção de que apenas L e B vão para o segundo turno, posso decidir que não vale a pena esperar até o segundo turno: para que esperar o 2º turno para votar contra B se de qualquer modo sei que não terei outra opção que votar em L no segundo turno? Não vou discutir aqui voto anulado que, na minha experiência, não tem tido qualquer impacto para além da autossatisfação do indivíduo que anula.

A defesa do voto útil não é mero cálculo aritmético. Exige duas premissas: a) identifico claramente um dos candidatos como aquele que deve ser derrotado em nome do bem comum e para evitar ameaça autocrática; b)tenho certeza de que não há chance de meu candidato preferido chegar ao 2º turno, o que deriva da previsão que sai das pesquisas eleitorais.

Tais premissas explicam que quem seja potencialmente mais prejudicado pelo eventual voto útil trate de desqualificar as pesquisas de intenção de voto. Há o lunático que brada que quem está em 1º lugar “sabe que vai perder” e há quem insinue que o resultado das pesquisas de intenção de voto é só aposta de loteria. Os analistas que compararam pesquisas e resultados em muitas eleições informam que pesquisas não são absolutamente precisas, mas elam acertam tendências e mostram vencedores.

Eleitores de qualquer dos candidatos podem se decidir pelo voto util. Mas é compreensível que os candidatos que pensam ter alguma chance de chegar ao 2º turno sejam os mais hostis à ideia de voto útil agora, que podem chamar de “desserviço” ou de “opção equivocada”. Vi até epítetos mais indignados, como “patético” e “nefasto”, usados não diretamente contra o voto útil, mas contra o comunicado de uma liderança política importante que pediu votos pela democracia sem indicar opção por qualquer dos candidatos. Exatamente porque o comunicado permite deduzir ou interpretar que a prioridade é derrotar o candidato que constitui a ameaça autoritária e de tumulto, e que, para isso, vale votar no candidato, qualquer um, com mais chance de derrotar aquele que ameaça a democracia, a ciência, a cultura, a educação, o meio ambiente. Os candidatos de 1% ou que sequer pontuam não chegaram a se preocupar com “voto útil”.

Podem existir circunstâncias especiais que justifiquem a preferência por uma decisão já no primeiro turno. E isso quando há, por exemplo, a ameaça de um dos candidatos questionar o resultado das urnas. Uma decisão no primeiro turno, quando são eleitos também governadores, senadores e deputados, ajudaria a inviabilizar politicamente uma tentativa de questionar o resultado das urnas.

Claro que esta colocação não esgota o assunto, pois um eleitor, ou um grupo de eleitores, pode ter motivos estratégicos (de longo ou curto prazo) para sinalizar uma opção de programa, de atitude ou de interesses mesmo quando esteja claro que esta não chegará ao segundo turno. O voto útil, ao reduzir concretamente as opções, pode empobrecer a democracia, porque não encontra expressão no resultado dos votos a posição de políticas públicas dos que são preteridos.

Por causa do voto útil, T ou C, S ou F, aparecerão com número de votos menor do que o número de pessoas que apoia suas posições, e cada um deles expressa uma parcela da opinião pública. Não cometerei a injustiça de chamar de “voto inútil” o que será dado aos candidatos que atualmente não têm chance de chegar ao 2º turno. O 1º turno existe em tese para a sinalização das preferências de futuro de cada eleitor, para que o eleitor se manifeste sobre quais as políticas públicas que apoia e pelas quais vai pressionar no futuro governo. Mas, e se o voto útil é defendido como alternativa democrática contra uma ameaça autocrática? Aí o voto útil é a opção de agora para que esses grupos de opinião, de várias tendências, possam continuar a se expressar no futuro.

Não poderemos deixar o futuro governante esquecer que foi eleito por grupos de opinião mais amplos que seu núcleo original de apoiadores. Não se trata simplesmente de fazer valer o princípio constitucional que um Presidente eleito já não é o candidato de um partido ou grupo de partidos, mas “Presidente de todos os brasileiros”. Retórica à parte, o novo governo não pode esquecer as promessas do momento em que buscou ampliar apoios, terá que conter os radicais do seu próprio campo. Corre um risco grande de fracasso o governante que não reconhecer que uma parte de seus eleitores lhe deu um “voto incomodado” (na apta expressão de Sergio C. Buarque). Um voto incomodado com muitas ações do passado que não quer ver repetidas.

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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