Helga Hoffmann
Nas costas do Mediterrâneo o verão está chegando, com céu azul, tempo quente e águas tranquilas, ao gosto dos turistas. Com mar mais calmo, mais barcos com refugiados afundam e vão afundar. 25 de maio, 26 de maio, 27 de maio: três dias, três barcos que viraram e afundaram, derrubando no mar Mediterrâneo milhares de migrantes desesperados. Pelo menos 700 pessoas desses três barcos morreram afogadas, segundo informou dois dias depois a agência da ONU para refugiados, a ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). Raramente se consegue recuperar os corpos. Funcionários da ACNUR fizeram entrevistas com sobreviventes desses naufrágios, resgatados pela marinha italiana e pelo grupo alemão de ajuda Sea-Watch, e vem delas a estimativa de desaparecidos no mar.
São espantosos os relatos dos sobreviventes sobre as condições da travessia. No caso da quinta-feira, 26 de maio, um barco pequeno, apinhado de mais de 600 pessoas, estava sendo puxado por um navio de contrabando maior. Quando o navio soltou a corda de reboque, o barco pequeno virou. Segundo comunicou a UNICEF, junto com a ACNUR, muitos dos que morreram afogados eram adolescentes desacompanhados.
O mar calmo do verão é uma oportunidade para contrabandistas intensificarem o transporte dos que fogem do conflito na Síria, do caos sangrento na Líbia, das batalhas no Iraque, da violência no Afeganistão e em vários outros lugares no Oriente Médio, na África, no sul asiático. As chegadas à Itália pelo mar estão aumentando. Este ano, até o fim de maio, mais de 45.000 migrantes haviam sido resgatados no mar, vindos das costas da Líbia. É difícil conter o contrabando de pessoas no Mediterrâneo, pois aos poucos foram se fechando as rotas alternativas. A rota dos Balcans ficou inviável à medida que vários países do leste europeu fecharam as fronteiras. E o acordo União Europeia-Turquia reduziu a entrada nas ilhas da Grécia via Turquia e o mar Egeu, travessia em que o risco de afogar era só um pouco menor.
Como acolher as multidões que buscam refúgio e asilo? O número de pessoas deslocadas por guerra, conflito violento ou perseguição atingiu um recorde, ultrapassa completamente a capacidade de ajuda da ACNUR, a agência de refugiados da ONU. Campos de refugiados provisórios multiplicaram-se, tendas que mal protegem do frio europeu em Idomeni, na fronteira com a Macedonia, ou em Callais, onde refugiados na França esperam uma maneira de chegar à Grã-Bretanha. O sofrimento e a escassez de tudo são ainda maiores no calor terrível das tendas montadas no lado do rio Eufrates oposto a Falluja, onde estão os civis que conseguiram atravessar suas águas fugindo dos combates entre as forças iraquianas e as do Estado Islâmico que controlava a cidade há três anos. Também há muitos abrigos e apoio improvisados por grupos de voluntários, como na ilha de Lesbos, onde permanecem milhares de refugiados que aguardam realocação em outros países europeus mais ao norte. Muitos dos locais em que se acumulam refugiados, sobretudo na Grécia, não são ainda abrigos, nem ao menos albergues precários, mas sim postos policiais em que passam semanas aguardando triagem e licença para partir para outro país.
Alguns governos, impulsionados por organizações de voluntários, tentam fechar campos precários e transferir seus habitantes para instalações assim chamadas definitivas. Assim surgiu o campo de Grande Synthe, montado por Médicos Sem Fronteiras e o prefeito local, para onde seriam removidos os refugiados da “selva de Callais”. E a prefeita de Paris anunciou em 31 de maio que pretende abrir um campo humanitário para acolher refugiados nos arredores da capital francesa.
A ONU só pode ir até onde seus países-membros permitem. A ONU administra o processo de ajuda e relocação de refugiados, através do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Há décadas a agência de refugiados da ONU tem menos financiamento do que precisa. É claro que isso se agravou desde 2015. Campos de refugiados da ONU na Turquia, no Líbano, na Jordânia e em alguns outros países ficaram superlotados: alimentos, medicina, escolas para as crianças, roupas, cobertores, permissão para trabalhar e oportunidades de trabalho – tudo é escasso. Em parte, a falta de ajuda adequada aos refugiados por parte da comunidade internacional (diretamente dos países ou através da ONU e da ACNUR) é a causa da disposição de risco de famílias inteiras, que põe suas vidas nas mãos de transportadores inescrupulosos, para uma travessia perigosa em busca de um mínimo de conforto e paz.
O Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, não é dado a declarações enfáticas, mas, depois de uma reunião internacional em Istambul, Turquia, para discutir ajuda humanitária, em fins de maio, observou que “atingimos um nível de sofrimento humano sem paralelo desde a fundação das Nações Unidas”, há 70 anos. A agência de refugiados, ACNUR, é um pouco mais nova, foi criada em 1950. A II Guerra Mundial obrigara milhões a abandonarem suas casas e deixara outros milhões desabrigados. A ACNUR foi criada para proteger e ajudar esses refugiados europeus, e depois disso ia ser dissolvida, no prazo de três anos. Mas isso já não foi possível. Agora a agência é mais necessária que nunca, e não está dando conta.
O Alto Comissário da ONU para Refugiados é eleito pela Assembleia Geral da ONU, com mandato de 5 anos. Responde, assim, diretamente à Assembleia Geral e tem relativa autonomia em relação ao Secretário-Geral da ONU. Os gastos são parte do orçamento da ONU. O atual Comissário é o italiano Filippo Grandi, eleito em 1º de janeiro de 2016. O árduo mandato abrange não apenas refugiados, mas também os “retornados”, antigos refugiados que voltam a seus países voluntariamente. Além disso, tem responsabilidades específicas relativas aos refugiados que são apátridas e, em certas circunstâncias, pode envolver-se em operações de proteção e ajuda a pessoas obrigadas a deixar seus lares dentro do seu próprio país (“internally displaced”). (Um exemplo recente foram os comboios da ONU com alimentos e remédios que conseguiram chegar a cidades sitiadas na Síria, tanto em zonas controladas pelo governo al-Assad quanto em zonas rebeldes.) Fora isso tem a função de “bons ofícios” típica de organizações internacionais. O mandato está baseado no direito público internacional e nos tratados de direito internacional. (Os detalhes jurídicos podem ser obtidos em www.unhcr.org).
Desde a II Guerra Mundial ainda não tínhamos visto tamanho êxodo em direção ocidental. Ao mesmo tempo a ajuda aos refugiados tem que ser planejada e organizada. Pode até ser que exista algum sonhador que consiga imaginar um planeta Terra sem fronteiras nacionais, mas por ora este é um mundo de estados nacionais em que a livre entrada desregulada é impensável. As discussões internacionais sobre um novo conceito de soberania nacional e o direito de intervir apenas começaram, neste século.
20 de junho é Dia Mundial do Refugiado. Para lembrar dezenove milhões e meio de pessoas, registradas como refugiados ou vivendo em exílio involuntário. Para lembrar que há milhões de pessoas que podem viver por décadas na condição de refugiados, quando o retorno ao lugar de origem permanece inviável. Um terço delas está em campos de refugiados. Precisam de ajuda humanitária, na tradição do samaritano bondoso da Bíblia, da moralidade pessoal, da compaixão que nos é ensinada. Mas precisam mais ainda da política, da política que consiga impedir que os conflitos se agravem e se transformem em guerra civil (como piorou o conflito na Síria em 5 anos), da política que entenda que a negociação é necessária, da política com capacidade de chegar a acordos que implicam concessões recíprocas, da política que aplique uma ideia mais racional e menos instintiva dos interesses do estado-nação, que reconheça que não se obterá paz e bem-estar construindo muros para proteger seu próprio espaço e seus próprios recursos, erguendo defesas para manter o monopólio de seus próprios empregos e serviços. Como disse Angela Merkel, a única chefe de estado do G7 que compareceu à reunião de Istambul, “ainda não temos um sistema de ajuda humanitária que funcione”. De fato, nem para os refugiados, nem para as populações que os abrigam, e tampouco para populações que se recusam a abrigá-los.
P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?
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