Helga Hoffmann

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Tempestade perfeita. Um clichê. Mas é o que segundo um pesquisador do famigerado “American Enterprise Institute” está se formando na Venezuela.[1] Perfeita? Por que? Para quem? Para Ryan C.Berg o atual momento é perfeito para reforçar a campanha de “pressão máxima” contra o regime de Nicolás Maduro. Perfeito, e eu cito, porque “Maduro enfrentará uma pandemia crescente com um sistema de saúde dilapidado que o “Johns Hopkins Center for Health Security” identificou como um dos mais frágeis no mundo”.[2] Eis aí um exemplar de foco fanático no que considera ser o objetivo de política externa dos Estados Unidos na América Latina, supostamente o de derrubar regimes ditatoriais. O resto parece não importar, já que o custo humanitário, os riscos, o sofrimento de seres humanos na Venezuela e nos países vizinhos sobrecarregados de refugiados venezuelanos, em particular a Colômbia, não fazem parte da sua análise. Berg esqueceu até que, em meados de 2019, registrou que a Venezuela tem um dos maiores estoques de armamentos do Hemisfério.

O pressuposto de que instalar um governo democrático na Venezuela seja uma prioridade da política externa norte-americana, neste momento, tampouco é totalmente evidente sem maiores explicações. Depende de como o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, avalie o impacto de qualquer ato ou declaração na campanha eleitoral em curso. Pois como explicar que, em 22 de março, Trump enviou uma carta ao líder norte-coreano Kim Jong Un para oferecer assistência na batalha de Pyongyang contra o coronavirus? Pyongyang não é a capital de um país em regime ditatorial? Seria para lembrar aos eleitores americanos seu suposto sucesso, as negociações para a desnuclearização da península coreana?

Nos últimos meses do ano passado e no começo deste ano havia se formado uma impressão de relativa estabilidade em Caracas. Estabilidade em uma situação difícil, sem perspectiva de mudança drástica. Havia notícias de que as prateleiras dos mercados começavam a se encher de mercadorias importadas. Caras, mas antes inexistentes. E cada vez mais percebia-se o dólar sendo usando nas compras. Já não apareciam, diferente do que acontecera em janeiro de 2019, analistas (e “analistas”) prevendo a queda de Maduro em 24 horas. Informação confiável sobre o que acontece dentro da Venezuela continua difícil, pois a imprensa é censurada. Ainda esta semana foi preso um jornalista, Darvinson Rojas, porque colocou em dúvida, no Twitter, os números oficiais de doentes pelo coronavirus, que seriam em 21 de março 70 casos.

Muito da informação, depois que o governo interrompeu as estatísticas, vem dos depoimentos dos que saíram do país, e há uma imensidão desses depoimentos.[3] Até mesmo uma boa parte da informação recente sobre as condições dos hospitais e laboratórios vêm de um médico que deixou a Venezuela ano passado. (Dr. Olivares Maquina em O Estado de S.Paulo, 20/03/2020, p. A12) Hospitais não foram poupados das interrupções no fornecimento de água e da falta de energia elétrica que têm ocorrido no país inteiro, sobretudo durante o apagão de março de 2019.

O fluxo de refugiados continua ininterrupto, ainda que menor, por rotas ilegais, depois que os vizinhos da Venezuela, assoberbados, passaram a adotar restrições à entrada. O Brasil só fechou a fronteira em 18 de março, depois de já instalada a epidemia do coronavirus, e depois de haver repentinamente decidido, em 7 de março, fechar embaixadas e consulados na Venezuela. A preocupação política maior, agora, é o impacto da imigração venezuelana na Colômbia, que tem uma fronteira porosa de 2200 km com a Venezuela, desde sempre usada por contrabandistas e pelo narcotráfico. As dificuldades da Colômbia foram muito agravadas pelo fechamento das fronteiras em países que eram destino dos imigrantes venezuelanos que usavam a vizinha Colômbia como rota de fuga, e que agora lá permanecem, sem poder sair.

É sabido que Juan Guaidó voltou a seu país e continua em liberdade. Depois do seu discurso no Forum Econômico Mundial em 23 de janeiro pedindo ajuda para os países que acolhem refugiados venezuelanos, depois de assistir sentado na galeria da Câmara dos Deputados em Washington o discurso sobre “O Estado da União” e ser saudado por Trump e aplaudido pelos presentes como celebridade, voltou a Caracas de um tour internacional por oito países em que pediu reforço das sanções. Enquanto isso Maduro estava perseguindo sua meta de 2 milhões de assinaturas contra as sanções em abaixo-assinado que enviaria à ONU.

Em 11 de março Juan Guaidó chamou por uma marcha, que seria um apoio à tentativa de parlamentares da oposição venezuelana de retomar o controle da Assembleia Nacional, mas ela foi violentamente dispersada pela polícia. Apoiadores do governo também saíram às ruas no mesmo dia, e consideram Guaidó “traidor da pátria”, percepção reforçada depois de seus continuados apelos por mais sanções, enquanto a população ouve há vários anos, em variados tons, que as dificuldades do país se devem à uma “guerra econômica” liderada pelos Estados Unidos. Essa marcha não conseguiu alterar o fato de que a Assembleia Nacional continua sob controle dos governistas, depois que, em janeiro, parlamentares apoiados pelo PSUV impediram a entrada dos oposicionistas e instalaram o chavista Luis Parra como Presidente.

Por sua estratégia de atuação baseada no endurecimento das sanções e identidade com a retórica de Trump, Juan Guaidó indiretamente dá força à parte da opinião pública que atribui ao exterior a culpa da hiperinflação, a baixa de salários e a crise em geral. Narrativa simples e simplista. E, no entanto, para enfrentar o desastre econômico da Venezuela não se pode considerar irrelevante o fato de que o governo aumentou a base monetária em mais do que incompreensíveis 2.400.000% nos últimos dois anos, sem falar de vários outros aspectos da política econômica doméstica. Com o novo fenômeno da “dolarização” da maior parte da economia da Venezuela diminuiu a força da narrativa que atribui apenas ao poderoso dólar a catástrofe econômica da Venezuela.

O colapso do bolívar, a sua total perda de valor, fez com que começasse a ser usado o dólar como moeda. Começou aos poucos, e de forma clandestina; os primeiros sinais registrados são de meados de 2018, ainda que haja testemunhos de transações internas em dólar em 2016. Isso está agora tão generalizado que os repórteres estrangeiros que chegam ao país se espantam com a facilidade de circulação do dólar, tolerada e até bem-vinda pelo governo, e com a enorme visibilidade da propaganda de cartões de crédito e pagamentos interbancários (em dólar). Ainda em fins de 2019 a dolarização havia atingido cerca de metade da economia, segundo estimou o economista Manuel Sutherland, Diretor do Centro de Investigação e Formação Operária (CIFO) em Caracas.[4] Agora já se afirma que está quase em toda parte. Ainda será preciso analisar como se deu a dolarização da economia venezuelana e, sobretudo, as consequências que isso pode ter. Por ora o país parece dividido entre os que têm dólares e os que não têm. De imediato vêm à mente as remessas dos imigrantes. Não sei de estimativas certas, mas aparentemente chegaram a ser elevadas. Não é p’ra menos, com uma diáspora venezuelana de 15% da população.

A gente vai começar a ver o quanto eram importantes as remessas de divisas dos imigrantes agora que elas necessariamente vão cair, com a quarentena e a recessão mundial. E é claro que além das exportações de petróleo que ainda se davam, inclusive contornando o embargo e pela exceção à Chevron nos Estados Unidos, há os suspeitos de sempre: contrabando de gente no poder, e até longe do poder, mineração ilegal de ouro, narcotráfico.

Fato é que, mesmo que fosse em um “equilíbrio do mal”, a Venezuela respirava, e havia perspectiva de alguma mudança na economia, no sentido da liberalização, obrigada pelo colapso.  Mas aí vieram os golpes de março: queda brutal do preço do petróleo, aperto das sanções americanas atingindo Rosneft e sua trading substituta, e o coronavirus, em duas frentes: a interna, a desafiar um sistema de saúde precário e uma população com 20% de desnutridos (cf. Programa Mundial de Alimentação da ONU) e a externa da quarentena generalizada, que já levou à perda de emprego de venezuelanos desesperados por já não terem como fazer remessas a seus parentes na Venezuela.

Nessas condições pedir mais sanções é desumano. É irresponsável. Já se viu que não garante mais sucesso à oposição Venezuela, muito menos à ala mais visivelmente apoiada pelo Presidente Trump. Alguma dúvida de que os Estados Unidos, ao insistirem nas sanções nesta situação de pandemia, serão responsabilizados pelos que morrerem com Covid-19 na Venezuela? A ONU já apelou, por Michelle Bachelet, a Comissária para Direitos Humanos, médica, que conhece bem a situação da Venezuela, que as sanções sejam interrompidas ou pelo menos atenuadas enquanto durar a pandemia e a situação de emergência sanitária. É uma questão de humanidade. E de responsabilidade também. Aliás, essas sanções jamais foram aprovadas pelo Conselho de segurança da ONU. Mais mortes não trarão democracia para a Venezuela.

[1] Uso o pejorativo apenas porque conheci esse think tank conservador sediado em Washington nos meus tempos de ONU, e lembro que de quando em vez éramos atacados pelo AEI.

[2] Ryan C.Berg, “The perfect storm in Venezuela”, AEI’s Rundown acessado em 20 de março de 2020.

[3] Dariam para um romance, como o que escreveu Adam Johnson (“The orphan master’s son”, Prêmio Pulitzer 2013) baseado nos depoimentos dos coreanos que fugiram da ditadura e vivem na Coreia do Sul. (Publicado em português pela Ed. Lafonte com o título “Jun Do”.)

[4] “Una dolarización “antiimperialista”? Como desapareció el dinero en Venezuela”. https://nuso.org/articulo/venezuela-Maduro-dolarizacion/

 

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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