Luiz Sérgio Henriques

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Desaparecido Chávez e entronizado Maduro há já alguns anos, a verdade é que o espectro do chavismo ronda, e não é de hoje, a política latino-americana. Inicialmente, o fenômeno teve a marca da esquerda política, que, pela voz de algumas de suas mais expressivas lideranças, viu na ruptura do regime constitucional promovida por Chávez a possibilidade de implantar progressivamente algo como uma “democracia de alta intensidade”. Esta, mediante o recurso direto às massas, devia subverter o formalismo e a abstração das constituições “normais” e garantir, de chofre, a presença dos deserdados nos mecanismos de decisão, enfeixados, em última análise, no líder único e incontestado.

Não é preciso muito esforço de memória para refazer o percurso do próprio Chávez por aqui nos anos de governo petista. O “kit” chavista de progressiva apropriação do poder volta e meia foi invocado, ao menos parcialmente, para resolver problemas do nosso País. Recorrentemente, por exemplo, falava-se na convocação de “constituintes exclusivas” para reformas específicas, como a política, em claro desrespeito à Carta de 1988. Movimentos sociais, como o dos sem terra, batiam o bumbo para exaltar a personalidade forte do coronel venezuelano, que teria reatado o fio da revolução continental iniciada em 1959. Um flerte com o chavismo, em suma, que tinha muitas e variadas manifestações. E não estaria errado quem visse nestas manifestações evidente déficit de cultura democrática por parte de setores não marginais da esquerda brasileira.

Mas haveremos de convir que, se de déficit democrático falamos, seria profundamente injusto limitá-lo à esquerda ou a uma parte dela. Autoritários da outra ponta não se assustaram com a retórica crescentemente “socialista” ou “anti-imperialista” do coronel Chávez – importava-lhes, antes, a receita subversiva, o espírito de quebra da ordem constitucional, a capacidade de arregimentar a sociedade contra o “inimigo interno”, anulando com isso a capacidade de movimentação das oposições e o jogo institucional inerente a qualquer democracia. Assim, a uniformização compulsória da vida social, implícita já na fase embrionária do projeto Chávez, é que terá atraído o então deputado Jair Bolsonaro, desde sempre representante monotemático das soluções castrenses e ditatoriais. Em 1999, Hugo Chávez – para o deputado brasileiro – aparecia como “esperança para a América Latina”. Ele faria “o que os militares fizeram no Brasil em 1964”, só que “com muito mais força” (O Estado de S. Paulo, 04.09.1999).

Lançando mão de uma palavra da moda, para o capitão brasileiro não importava muito a diversidade ideológica, real ou suposta, com o coronel venezuelano. Acima de qualquer divergência, a Venezuela era uma questão de método, um caminho a ser explorado, uma possibilidade, se não promissora, ao menos a única que povoava seu próprio e acanhado horizonte. Para esta possibilidade sair do campo enevoado do sonho – ou do pesadelo –, era necessário que a democracia desse errado ou que esta percepção se generalizasse. Era ainda necessário que os instrumentos da política democrática se revelassem ineficazes e corrompidos – ou assim parecessem a muitos – e que a própria sociedade civil, dividida e desmoralizada, desse o sinal verde para uma nova experiência autoritária, que desta vez seria calcada, simultaneamente, na convocação do homem providencial e da única instituição “permanente e estável” da história republicana ou que tal se presume.

Não nos é lícito diminuir minimamente a experiência nacional venezuelana. Nada custa lembrar que, a partir de 1958 e por quase quatro décadas, aquele vizinho teve governos civis que garantiam as liberdades básicas, bem como partidos que em certo momento pareciam dotados de muita representatividade e identidade – os democratas cristãos do Copei e os sociais-democratas da AD. Crises muito sérias não faltaram, como a da malfadada guerrilha inspirada pelos cubanos no início dos anos 1960. No entanto, sem nada desmerecer, obviamente o Estado e a sociedade lá dependem basicamente do petróleo, cujos ciclos determinam a viabilidade dos governos e a estabilidade das instituições. O Brasil, por contraste, emergiu do regime militar com um tipo de sociedade que nos agradava chamar de “ocidental”: desejosa de liberdades, já treinada no pluralismo das correntes políticas e culturais, disposta a moldar instituições modernas e até modelares, como se viu no esforço que levou à Carta de 1988. Portanto, um retrocesso “venezuelano” por aqui seria uma desgraça particularmente dolorosa, pois muito provavelmente haveria de envolver, em contraposição àquela riqueza e diversidade social, uma aventura cesarista e uma “gendarmização” das Forças Armadas: uma coisa e outra, uma coisa ououtra, ressalvadas as possíveis variantes, todas igualmente deploráveis.

Um aspecto ainda mais cruel está presente na “perspectiva venezuelana” (mais propriamente, chavista e madurista) que em tese aqui delineamos. A afirmação do poder ditatorial, seu enraizamento parcial na sociedade, inclusive através de milícias violentas e armadas (os inomináveis “coletivos”), o envolvimento militar nos assuntos e nos “negócios” do dia – tudo isso tem configurado, no país vizinho, uma vertigem sem fim, uma descida aos infernos. Não há propriamente racionalidade: busca-se o poder pelo poder, ainda que isso implique a miséria generalizada e um deslocamento populacional que se inscreve entre as maiores tragédias jamais ocorridas na América Latina. Um drama que, por ora, não encontra quem o possa deter nem mesmo entre setores estéreis e radicalizados da oposição. Esta ruína generalizada, na verdade, parece a sina dos autoritarismos contemporâneos que se lançam de modo irracional, com uma indigência intelectual que beira o absurdo, contra a ideia democrática, apesar de todas as imperfeições que esta ideia possa ter no mundo real das coisas. Até por um sentimento profundo de nacionalidade devemos tentar escapar deste caminho de destruição e autodestruição.

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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