Elimar Pinheiro do Nascimento
Holandeses se anteciparam. Um grupo de 170 acadêmicos, de diversas áreas do conhecimento, lançou um pequeno manifesto – ousado, fora do comum – de resposta à pandemia. Essencialmente o manifesto propõe: reduzir a produção de coisas ostentatórias, desnecessárias e poluentes, como petróleo, armas e publicidade; construir um modelo econômico baseado na redistribuição e, portanto, restringir a desigualdade; adotar uma agricultura regenerativa, com empregos e salários justos, dando fim aos venenos em nossa alimentação e ao abandono do campo; reduzir o consumo e as viagens; e, finalmente, cancelar as dívidas dos pobres, pequenos empreendedores e países do Sul. Em resumo: cultivar a austeridade material e a abundância afetiva. Os holandeses propuseram o Decrescimento, movimento nascido na dobra do século passado com este, na França e Espanha.
Normalmente associamos o Decrescimento a uma resposta à crise ecológica. Sem dúvida esta relação existe, mas o centro das suas preocupações situa-se no combate à ideia do crescimento econômico contínuo, que constitui a ideologia dominante no mundo de hoje, tanto à esquerda quanto à direita do espectro ideológico. A crise é um estímulo. Assim, a crítica ao desenvolvimentismo e o combate à degradação ambiental (crise ecológica) se casam na noção de que é impossível um crescimento infinito em um mundo finito. Se quisermos utilizar uma proposição de Foucault (As palavras e as coisas, 2000), a noção de desenvolvimento, como sinônimo de crescimento econômico, constitui uma epistème, ou seja, um horizonte do conhecimento que limita a maneira como definimos os problemas e, sobretudo, como construímos as suas soluções. Tudo é pensado no quadro do crescimento econômico, e não temos capacidade para pensar um mundo sem crescimento ou, como diz Tim Jackson (Prosperity Without Growth, 2009; Prosperidade sem crescimento: vida boa em um planeta finito, 2013), um mundo com prosperidade, mas sem crescimento.
Desenvolvimento é uma noção moderna, ocidental e capitalista. A ideia de desenvolvimento está estreitamente relacionada ao processo do que Latouche chamou de Ocidentalização do Mundo (Vozes, 1994), que se desenvolve ao longo dos séculos XIX e XX. Ela se relaciona também ao processo de universalização do capitalismo, à produção de mercadorias e ao consumo de massa. Nasce sob o nome de progresso, com a segunda revolução industrial, as grandes invenções ocorridas na passagem do século XIX para o XX, e a segunda expansão europeia no final do século XIX. No Pós-Segunda Guerra Mundial, a noção de desenvolvimento substitui a de progresso, a partir do discurso do presidente norte-americano Harry Truman (discurso de posse do segundo mandato, em 20/01/1949), e com o plano Marshall, em que os Estados Unidos, para enfrentar a URSS, investem na recuperação dos países perdedores da Guerra (Alemanha e Japão), ou por ela destruídos, como Inglaterra e França, e no apoio econômico aos países do Sul.
A noção de desenvolvimento se desdobrou em inúmeras teorias diferenciadas, que atravessaram todo o século XX, desembocando na ideia recente do desenvolvimento sustentável, conforme resume Enriquez (Trajetórias do desenvolvimento, 2010). No entanto, por mais que tenham ocorrido tentativas, e foram muitas, de separar a ideia do desenvolvimento da de crescimento econômico, a primeira sempre tem embutido a segunda. Tentativas de relacionar desenvolvimento à qualidade de vida sempre tiveram vida curta ou espaço restrito, apesar dos esforços de Celso Furtado e Amartya Sen, entre outros.
É claro que a palavra desenvolvimento não está umbilicalmente ligada a crescimento em todos os campos do conhecimento. Na psicologia pode significar simplesmente mudança; na pedagogia significa aperfeiçoamento. No entanto, no campo da economia, a imbricação é evidente e não tem sido superada. Por isso, os defensores do decrescimento se batem contra o imperialismo do economicismo, demonstrando a irracionalidade do sistema econômico contemporâneo, e acompanham Castells quando define a economia como cultura (Outra economia é possível. Cultura e economia em tempos de crise, 2019).
Todas as teorias de desenvolvimento defendem, embora de maneira diferenciada, a ideia de um aumento contínuo da produção e da produtividade da base econômica. A lógica é simples: o crescimento do desejo de consumir bens gera um círculo vicioso de mais produção, mais consumo, mais produção. Sem a possibilidade de aumentar o consumo, a desigualdade torna-se insuportável para os humanos. Mas, se estes aumentam o seu consumo, tendem a apoiar fortemente o crescimento contínuo e a tolerar certo grau de desigualdade. E como a desigualdade é parte intrínseca da economia de mercado, assegurar a desigualdade supõe manter a economia em permanente crescimento, em particular da produção de mercadorias, bens e serviços, e só.
Herman Daly se pergunta, com razão: em que medida a contabilidade do crescimento é uma garantia de que exista crescimento? Afinal, o PIB tanto revela quanto esconde, pois se trata de uma medida irracional do crescimento econômico: acidentes de carro nas estradas, que matam mais de 60 mil pessoas por ano, fazem o PIB crescer; milhares de famílias, cultivando seus pomares e hortas, produzindo milhares de frutas e hortaliças para seu consumo, não constam no PIB. No entanto, a autoprodução, ou produção de subsistência, que não aparece no PIB, reduz o impacto ambiental e aumenta a felicidade das pessoas, enquanto os acidentes de veículos automotivos aumentam o sofrimento. No mesmo sentido dizia Castoriadis (Uma sociedade à deriva, 2006), “prefiro muito mais um amigo novo do que um carro”, mas apenas este movimenta o PIB.
Uma outra suposição sobre a qual se ergueu a fé cega no crescimento relaciona-se ao mito da tecnologia, que atualmente cresce exponencialmente, nas palavras de Ray Kurzweil (The singularity is Near, 2006). A tecnologia é vista apenas como uma solução de problemas, e não se percebe que ela causa outros problemas e, particularmente, novos riscos, na expressão de Ulrich Beck (La sociedad del riesgo, 2006) e Ivan Illich (Liberer l’avenir, 1971).
Muitas questões surgem nas relações entre inovação tecnológica e sustentabilidade, particularmente relacionadas com a substituibilidade dos fatores de produção. No curto prazo, os ganhos de produtividade só ocorrem com a elevação do fluxo de fatores, principalmente insumos e energia, já que a quantidade dos outros fatores é rígida. A suposição de que a tecnologia permite a elevação contínua (ilimitada) da produtividade dos recursos naturais, com a substituição ilimitada destes recursos, é um nonsense. Não há justificativa para imaginar que os recursos naturais podem ser indefinidamente substituídos por outros fatores de produção.
A alternativa apresentada do Desenvolvimento Sustentável, hoje nos termos da economia verde, não tem nem a mesma lógica nem o mesmo resultado que as propostas do Decrescimento. Esta tentativa de igualizar estas duas proposituras é um contrassenso. É verdade que a produção industrial tem sido acompanhada da ecoeficiência, reduzindo a energia e a matéria prima na produção dos bens materiais. Esquece-se, porém, que esta economia é reduzida a pó, com o aumento da produção para atender à demanda dos milhões de pessoas que ascendem, a cada ano, ao mercado de consumo no mundo inteiro, sobretudo na Ásia. Não se pode esquecer o “Paradoxo de Jevons”: “quanto maior a redução do custo de um produto, maior o seu consumo”. Infelizmente, a eficiência tecnológica incita ao consumo, na lógica da economia de mercado.
Latouche costuma comparar a nossa sociedade, em seu momento atual, com o que denomina de “teorema das algas”. Em resumo, o teorema consiste no seguinte. Uma alga se deposita em um grande lago. Durante dezenas de anos se reproduz, aumentando seu tamanho em 100% a cada ano. Quando alcançar a metade do lago, será necessário apenas um ano para cobri-lo completamente, inviabilizando a vida de milhares de peixes. Dessa forma, segundo este autor, encontramo-nos, atualmente, no momento em que o lago se encontra tomado pela metade. Em outras palavras, estaríamos ingressando no período da sexta extinção das espécies da terra. Na quinta, sobreviveram apenas 5% das espécies.
O dilema é que os povos que se encontram fora do acesso aos bens produzidos pela sociedade moderna sentem-se no direito de alcançá-los – e quem poderia negar? -, o que gera uma carreira louca e desenfreada ao mercado. Emerge, portanto, com urgência, a necessidade de se buscar um novo modo de viver e de se relacionar com a natureza, que só é possível se for abandonada a louca corrida criada pela ideia do crescimento a todo custo.
A carreira insana pelo desenvolvimento econômico aumenta a poluição, a degradação ambiental, a destruição da biodiversidade e, agora, acelera as mudanças climáticas, com aquecimento global, maior número de eventos críticos e catástrofes, e efeitos negativos sobre a saúde das pessoas. Além de alimentar o surgimento de epidemias; estamos na sexta do século XXI (SARS, 2020; gripe aviária (2003); N1H1, 2009; MERS, 2012; Ebola, 2013), agora sob a forma de uma pandemia, cujo fim não conseguimos visualizar com clareza. E um vírus mais perigoso e, aparentemente, mais letal do que os anteriores. A Organização Mundial da Saúde calcula que, das epidemias anteriores, a mais letal (N1H1) matou cerca de 20 mil pessoas, a revista médica The Lancet, calcula que a mortandade pode ter atingido entre 150 e 500 mil.
De forma resumida, para os autores do Decrescimento, há três razões principais para lutar contra o crescimento econômico permanente. A primeira é que a sociedade do crescimento contínuo não é sustentável: esgota os recursos renováveis para as próximas gerações; ameaça piorar a qualidade de vida da atual e comprometer a vida de parte da humanidade, senão toda. A segunda razão é que a sociedade do crescimento não é desejável: aumenta as desigualdades regionais e sociais, incrementa a insatisfação e amplia a possibilidade de pandemias, colocando em risco a própria espécie humana. A terceira é que a sociedade do crescimento não produz boa qualidade de vida para a esmagadora maioria de seus componentes. Para uma parcela dos humanos, mais rica, cria um consumo desnecessário e ostentatório, que produz externalidades negativas para o meio ambiente e para o próprio consumidor. Para outra parcela, de menor poder aquisitivo, a impossibilidade do consumo produz frustrações, além de fome. Na verdade, causa frustração para ambas as partes: para uns, manifesta-se na permanência da insatisfação, que o aumento do consumo não resolve; para outros, provê a impossibilidade do consumo, identificado com o sinal da felicidade e, portanto, os conduz a uma baixa autoestima (noção de fracassado).
A vereda para superar este impasse é a proposta por Tim Jacson: ter uma vida boa, para todos, sem crescimento, leia-se, sem degradar a natureza. E o desafio é como construir esta alternativa. Eis o dilema que a pandemia atual nos coloca, conforme abordei em outro texto: A pandemia põe o decrescimento na ordem do dia: raízes teóricas de um debate (Ateliê de Humanidades).
P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?
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