Jean Marc von der Weid
Como a fome será vista a partir do palácio do Planalto? Bolsonaro vive, como dizia a minha mãe, “no mundo da lua”. Ele atravessou seus quase quatro anos de governo inventando uma realidade virtual, incrivelmente distante da realidade. Há quem diga que tudo o que ele diz não é mais do que o produto de uma tática de negar tudo o que lhe é desagradável ou prejudicial. Outros acham que ele acredita mesmo nas mentiras que dispara diariamente, a cada hora, sobre qualquer assunto. Ele mente mais rápido do que a metralhadora que empunha de vez em quando (na imaginação, mas também fisicamente), cada vez que pensa no PT ou no Lula, na esquerda, nos intelectuais (até os de direita), nas mulheres, nos homossexuais e em tudo e todos os objetos do ódio que o consome, acordado ou dormindo. Pode ser que ele acabe por acreditar nas mentiras que conta, é uma síndrome conhecida entre os mitômanos.
O presidente conseguiu negar o risco da pior pandemia em pouco mais de cem anos, com quase 700 mil mortos e milhões de sequelados, só no Brasil. Ele também nega que exista desmatamento e queimadas descontroladas. Foi capaz de dizer que tinha voado entre Belém e Manaus e só tinha visto florestas. Ele nega casos de corrupção nos ministérios da Saúde, da Educação, do Meio Ambiente, da Infraestrutura, da Defesa e outros mais. Casos que explodiram na imprensa e na CPI. Protegido pela cumplicidade do Procurador Geral da República, ele se permite ignorar todos os escândalos, inclusive os que chegaram na sua família.
Mas, apesar de a mentirada do presidente ser parte do nosso quotidiano, a ponto de todos se perguntarem: “qual foi a maior mentira do dia?”, ficamos estarrecidos quando o presidente afirmou que a fome não existia no Brasil. E “provou” a sua tese, indicando que ele não viu ninguém pedindo pão nas padarias, nas quais, eventualmente, frequenta em Brasília.
Tudo bem que o personagem é tão primitivo que só acredita naquilo que vê, e mesmo assim, sujeita sua percepção a interpretações bizarras. Suponhamos que Bolsonaro tenha ido a uma padaria, onde não houvesse a massa mais ou menos numerosa e mais ou menos incisiva nos seus pedidos de ajuda, que todos nos habituamos a ver e a conviver em padarias, supermercados, feiras, armazéns em todo o país. Seria um caso à parte, se é que a segurança do presidente não limpou a área antes de ele chegar. Mas o presidente concluir que, se ele não viu ninguém pedindo pão em uma padaria do Paranoá, em um domingo de motociata, é porque os famintos não existem, são uma criação da esquerda, do PT, do Lula, dos intelectuais, que ele tanto detesta, deve ser a mesma lógica dos que negam que a terra é redonda, por não conseguir ver a curvatura da superfície.
Embora o presidente não acredite naquilo que não vê, ou naquilo que não lhe é conveniente acreditar, vou procurar esclarecê-lo. E lembrar a sua responsabilidade no quadro catastrófico que estamos vivendo.
Em 2004, eram 15 milhões de famintos. Este número veio caindo pelo conjunto de políticas adotadas pelos governos Lula e Dilma, em particular a maior oferta de emprego, com ou sem carteira assinada, o aumento da renda média impulsado pelo aumento real do salário-mínimo e pelo programa Bolsa Família, dirigido aos mais carentes, chamados nas pesquisas de miseráveis. Em 2009, eram 11,2 milhões, uma queda de 25%. Em 2013, eram 7,2 milhões, uma queda de 37%. Em 2018, após o ano de crise de 2015, provocada pelo cerco do congresso ao governo de Dilma e mais os três anos de recessão e perda de empregos e direitos trabalhistas do governo de Temer, este número subiu para 10,3 milhões, um aumento de 43%. Já no governo de Bolsonaro, em 2020, em plena pandemia e com um forte auxílio governamental (arrancado de Bolsonaro/Guedes pelo Congresso), o número tinha saltado para 14 milhões, um aumento de 27%. E em 2022, já na pós pandemia, este número salta para 33,1 milhões, 122% de aumento. Se tomarmos apenas o tempo do governo Bolsonaro, o salto foi de 22,8 milhões de famintos, um aumento de 221%!
Dá para entender que Bolsonaro negue esta realidade catastrófica, pois se a admitisse, e se tivesse um mínimo de sensibilidade, ele estaria buscando uma forma de se suicidar, quem sabe, tomando uma overdose de cloroquina.
Não estamos considerando nestes dados sinistros os 32,4 milhões de pessoas que saltam uma refeição por dia, e que comem alimentos de “encher barriga”, a nova dieta nacional de miojo com salsicha. Ou os outros 60 milhões, que consomem alimentos de baixa qualidade e afetados pelo que, tecnicamente, se chama de má-nutrição, caracterizada por baixo consumo de sais minerais e vitaminas. Isto nos leva à crise generalizada na saúde, com a explosão de casos de diabetes, hipertensão arterial e câncer, as principais causas de óbitos por doenças no Brasil. É mole ou quer mais, Bolsonaro?
O presidente e seus palacianos não devem ter passado fome na vida. Quando sentem uma dorzinha no estomago, eles a chamam de apetite e vão se sentar em mesas com farta oferta de alimentos. Se eles comem mal, e isto parece evidente pelo que se vê o presidente comer, é por ignorância e não por carência.
Bolsonaro afirma que ele conhece o povo por sair com frequência do palácio. Mas as viagens em helicópteros e aviões da FAB e os passeios em motocicleta ou jet-ski não permitem conhecer o povo. O presidente acha que seus encontros no curralzinho do Alvorada são “banho de povo”. Os basbaques que se juntam para gritar “mito, mito” estão longe de ser o povo. É uma claque organizada para aplaudi-lo, embora às vezes apareçam desmancha-prazeres para chamá-lo de tchutchuca do Centrão. Quem sabe um dia o seu tigrão do Centrão, Arthur Lira, o convida para conhecer o povão de Arapiraca.
Bolsonaro tentou dar um golpe eleitoreiro, dando um aumento de 200,00 reais no programa que ele inventou para tentar fazer esquecer o programa Bolsa Família do presidente Lula. Foi tão escandalosamente golpista que apoiou a manobra ilegal do Centrão para tentar comprar a simpatia daqueles que seu governo ferrou ao longo de
quase quatro anos. Esqueceu de estender a benesse para além do dia da eleição, e agora, correndo atrás do prejuízo, promete fazê-lo para o próximo ano. Como a incompetência faz parte do seu modo de governar, a Lei de Diretrizes Orçamentárias não incluiu esta despesa.
Até agora, o debate sobre o que cada candidato pretende fazer para enfrentar a crise nacional alimentar está carente de uma proposta mais robusta, que analise a fundo o problema e proponha um programa Fome Zero com as dimensões necessárias. Chutam- se valores de ajuda, mas ninguém justifica o cálculo ou o número e situação dos beneficiários. Lula e a coligação progressista que o apoia ainda estão devendo. Ainda há tempo.
P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?
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