Sérgio C. Buarque
A convulsão social nesta semana no Chile mostra que o país andino está longe de ser o oásis de tranquilidade e paz social como se propagava mundo afora. O aumento da tarifa do metrô foi apenas um detonador de uma clara insatisfação latente e imprecisa na sociedade chilena, que se transformou em indignação e violência, depois da desproporcional repressão do governo sobre os jovens que pulavam as catracas nas estações. Apesar dos saques e destruição do patrimônio público praticados por parcela dos manifestantes, o exército na rua e o toque de recolher são gritos apavorantes nos ouvidos sensíveis dos chilenos, e o saldo de 18 mortos demonstra o descontrole do presidente Sebastián Piñera, que agora, tardiamente, pede desculpas à população. A crise política é séria e reflete uma enfermidade social que vem se acumulando ao longo dos anos, e explodiu agora com a degradação do sistema de capitalização da previdência social, a pressão do crédito educativo e a deterioração da saúde pública.
Entretanto, é totalmente infundada a ideia difundida nas redes sociais, segundo a qual a abrangência e a violência das manifestações demonstram o desastre da economia e o fracasso do modelo econômico e social do Chile. O Chile tem a melhor qualidade de vida da América Latina, expressa em quase todos os indicadores sociais, posicionando-se muito à frente da maioria dos países do continente, principalmente do Brasil. A começar pela indiscutível e longeva estabilidade econômica, inflação de 2% ao ano e crescimento médio de 3,8% ao ano, de 2000 a 2016 (previsão de crescimento de 2,5% este ano). O país tem o mais alto PIB per capita da América Latina, com U$ 14.692, e é, de longe, o mais competitivo do continente, segundo o ranking do Fórum Econômico Mundial, situando-se em 33º lugar na lista de 141 países pesquisados, bem à frente do segundo colocado, o México, em 48º lugar, e mais distante ainda do Brasil, que está na 71ª posição.
No IDH-Índice de Desenvolvimento Humano, que sintetiza o nível de vida da população, o Chile lidera na América Latina, com o mais alto índice (0,843), sendo o 44º melhor do mundo, muito à frente do Brasil, com seus 0,759 (79ª posição). A desigualdade social do pequeno país andino, medida pelo Índice de Gini, que teve grande influência na atual convulsão social, não é a menor do continente, mas está entre as mais baixas – 0,453 na escala de zero a um – perdendo apenas para o Peru e, principalmente, para o Uruguai. E, claro, está bem abaixo da desigualdade do Brasil, com índice de Gini de 0,511. O país andino não está livre da pobreza, mas apenas 1,4% da sua população vivem em extrema pobreza, um terço do percentual do Brasil, e a mortalidade infantil, com 6,2 óbitos em cem mil nascidos vivos, é quase a metade dos 12,8 do índice brasileiro.
Na qualidade da educação, medida pelo PISA-Programa Internacional de Avaliação de Alunos, o Chile também lidera o continente, com a mais alta nota da América Latina nas três modalidades: é o 48º do mundo em ciências, o 51º em matemática e o 41º em redação. Para se ter uma ideia, o Brasil é o 67º, o 68º e o 63º nas três modalidades, respectivamente. O percentual de analfabetos no Chile representa 3,7%, em segundo lugar, atrás do Uruguai, mas menos da metade dos 8,3% do Brasil. Por outro lado, o Chile tem o segundo maior índice de escolaridade do continente, atrás apenas do Peru, com 32,5% dos chilenos tendo 13 anos ou mais de estudo, mais uma vez dobrando o nivel brasileiro (18,6% da população). Há corrupção no Chile? Sim, mas, segundo a Transparência Internacional, o país é o segundo menos corrupto do continente, na 27ª posição no mundo, atrás apenas do Uruguai (23º) e, claro, muito melhor que o Brasil, que está quase na laterna (105º)
Ao contrário do que acusam alguns, a atual crise do Chile não é responsabilidade do chamado neoliberalismo, da mesma forma que o sucesso econômico e social ao longo das décadas, expresso nos indicadores acima, não é mérito dessa corrente política. O desempenho diferenciado do Chile, que permitia falar de um oásis na América Latina, tem sido o resultado da administração fiscal competente e responsável com eficiente gasto social.
Diante da crise, o Chile tem ainda uma grande vantagem, principalmente se comparado com as dificuldades do Brasil. Embora tenha um déficit fiscal moderado, o Chile tem uma carga tributária muito baixa, apenas 20% do PIB, principalmente quando comparada com a alta carga brasileira, estimada em 35% do PIB. Por isso, o Estado chileno tem potencial de elevação da receita pública, com aumento de impostos sobre as rendas mais altas, de modo a financiar os investimentos públicos que reduzam as desigualdades sociais, e, desta forma, atender às exigências da população, e consolidar a posição do país, de lider de qualidade de vida na América Latina. Apesar dos melhores indicadores do continente, o Chile mostrou agora um mal-estar da sociedade, que denuncia falhas e dificuldades sociais, e que exige respostas ousadas dos governantes.
P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?
Democracia Hoje - Artigos
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