O que está por trás da fundação de um país? Ideias, fazeres, cultura. Liberdade para criar. Clima para pensar. O que diz Zygmunt Bauman: “Uma vez que a liberdade toma o lugar do consenso como critério de qualidade de vida, a arte pós-moderna ganha pontos. Ela acentua a liberdade por manter a imaginação desperta e manter as possibilidades vivas”.

A Semana de Arte Moderna de 1922 é uma data. E foi uma ideia. Acalentada no berço de pensamento inovador. De ruptura de padrões patriarcais. Sociedade que se urbanizava. E inaugurava instituições sociais e políticas. Empresas, imprensa, República. Foi este ambiente que inspirou a poesia sem rima de Manuel Bandeira; a forma arquitetônica delicadamente feminina de Oscar Niemeyer; e a geração de escritores de 1945. O caminho foi a liberdade democrática.

Nessa trilha, vieram a Bossa Nova, o Tropicalismo, o Concretismo. Tom Jobim, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque. O romance regionalista. E dois sóis num céu de estrelas: Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Com as trevas de 1964, a claridade cedeu lugar ao obscurantismo. Censura, tortura. Suspendeu-se a inteligência. Prevaleceu a força, o autoritarismo. 1985. Após vinte e um anos, o poder é devolvido a um civil. Todavia, com a eleição de Bolsonaro, volta o discurso do ódio, a ameaça à ditadura, o medo.

Os recursos para a cultura foram suspensos pelo governo. O presidente vetou duas leis de incentivo à cultura, Aldir Blanc e Paulo Gustavo. É a velha questão: a truculência, cega e mouca, teme a inteligência. Que ama a criatividade e ouve bonitezas.

Na Espanha, ditadura de Franco, o poeta Federico Garcia Lorca foi assassinado em 1936. No regime nazista de Hitler, o filósofo judeu, Walter Benjamin, da Escola de Frankfurt, perseguido, suicidou-se em 1940. No Brasil de Bolsonaro, jornalistas mulheres são perseguidas. Em clara evidência de vocação misógina do chefe e de seus seguidores. Até agora, duas mortes são contabilizadas por razões políticas.

Núcleo da história: o Brasil oficial passa por uma crise moral. Moral no sentido da elaboração da cultura, de tessitura de instituições democráticas. Por sua vez, o Brasil civil, o Brasil universitário, o Brasil da inteligência, lutam. A sociedade brasileira, espantada, tem seu processo criativo atropelado.

Estive, hoje, de manhã numa livraria. Observei que a produção intelectual recente de autores nacionais é quase toda voltada para analisar o autoritarismo. Ou seja, estamos investindo tempo com temas que estavam superados entre nós. Ao invés de aprofundarmos o estudo de como recuperarmos a qualidade da educação. De como fortalecermos federativamente este extraordinário instrumento de saúde pública, que é o SUS. De como voltarmos a produzir ciência e tecnologia. Pois esses assuntos, próprios de sociedades desenvolvidas, foram interditados no Brasil de Bolsonaro. Este governo cuida bem de orçamentos secretos.

Além do déficit administrativo, da fome e da volta da inflação, o governo Bolsonaro gerou um abismo social e um vazio na cultura. Abismo social na divisão entre os brasileiros. Por conta de um discurso odiento. Que não respeita a opinião do outro, nem as instituições, nem a si próprio. Pelas impropriedades que pratica.

Vazio na cultura na interdição da gentileza, do respeito, da inteligência, da cultura, do cinema, de museus, de teatros. No corte brutal de verbas que iluminam o espírito. Não sei se o governo sabe que, uma das razões do sucesso dos americanos no pós-guerra, foi a aplicação do conceito de Joseph Nye, chamado de soft power. Deu leveza ao perfil da nação estado-unidense. Atraiu turistas. Estimulou a produção artística, musical. E possibilitou a construção do Lincoln Center, em Nova York. Com quatro prédios destinados a concerto, balé, teatro e ópera.

Talvez este tipo de assunto não desperte a sensibilidade do governante. Mas tudo passa. Ele também passará. E, como um país é fruto de ideias, voltaremos a pensar. A imaginar. A semear a economia criativa. Reinventando o Brasil. A primavera brasileira.

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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