Uma noite de domingo sem tédio. A do debate presidencial. O ar noturno, frio, contrastava com o calor do clima emocional do evento. As chamadas da tv. Os apelos dos apresentadores para o horário. A sequência dos candidatos. O tempo cronometrado. Uma cronometragem agônica, diria Nelson Rodrigues.

Mas, havia uma surpresa no cenário teatral: a magia da mulher. Sua energia imponderável. Sedução transcendente. Uma pintura. Lembrando as mulheres esguias de Modigliani. O feminino elástico de Salvador Dali. O fêmeo cúbico, esquadrinhado, de Picasso. O Abaporu de Tarsila do Amaral.

Quando a realidade alcança o limite do insuportável buscamos a arte. E, diante do patriarcalismo superado, Simone virou Tarsila. Com a mesma tranquila coragem das milhões de mulheres brasileiras que sustentam a família. Na infâmia de ausente sustento masculino. Tarsila. Abaporu. Simone. Política é arte. Arte é beleza. Do voto. O voto é belo.

A certa altura, tirei o som. Às vezes, faço isso. Como exercício de interpretação gestual. De semblantes. De expressões e impressões. De desates. Desatar de corpo. Dublês de corpo e alma. O candidato, que lidera pesquisas, com estofo de experiência vivida. Um tom quase casual de respostas consabidas.

O candidato, vice-líder, na truculência habitual deixou cair o véu. Atacou verbalmente uma jornalista. Que, por sinal, nem endereçara a ele a pergunta. Mas o jogo bruto falou mais alto. E a misoginia insuperável, o velho machismo incontido, sobrepuseram o respeito. E desfizeram a elegância. A mesma transgressão. De sempre.

E, há mais: há um coração ambulante. De brasileiro com raízes portuguesas. Com propósito de celebrar o que não foi celebrado. Na deslembrança dos 200 anos de Independência não comemorados, um coração viajante. Saudado por distraído inquilino com “Deus, pátria, família”. A mesma evocação do ditador espanhol, Franco. Há mais de oitenta anos. Inimaginável.

O Brasil é um país fantástico. Um espanto. Quanto mais amputações, de educação, de vacina, de funais, mais florescem aprendizado, vacinação, povos originais. Quanto mais negacionismo da ciência, mais afirmação do pensamento científico, criativo, inspirador. Quanto mais mediocridade, mais inteligência. Como disse o poeta, a vida trará este país “do fundo, como peixe de olhos espantados”.

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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