Receita para a cura do fanatismo político – João Rego

João Rego

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O fanatismo é um fenômeno que acompanha a humanidade desde a passagem do estado de natureza para o de sociedade. O homem, perdido em angustiantes perguntas sem respostas, sem saber por que e para que existe, vendo-se sozinho diante da morte que o ceifará no final, exasperadamente apega-se àquilo que seu imaginário pode fantasiar, para suportar tamanha angústia. As religiões atendem a essa demanda com razoável capacidade: claro, queimando e matando alguns incréus para, enfim, impor suas verdades deste e do outro mundo.

Todo o conhecimento produzido pela humanidade tem como força motriz a desesperada tentativa de preencher este vazio, que o universo, silente, insiste em nos deixar sem resposta.

Na política, o mecanismo segue uma lógica parecida, e, como este artigo tem o objetivo de discutir as causas do fanatismo político – ligeiramente diferente, embora herdeiro do religioso – será sobre este fenômeno que iremos discorrer.

ESTADO, PODER E SOCIEDADE

1. A pergunta de por que nas sociedades humanas há sempre uma classe que domina e outra que, dominada, obedece, é um dos pontos fulcrais da ciência política. O poder, esta coisa abstrata, se estabelece onde há agrupamentos humanos, e é por meio dele que são materializadas as formas de dominação de um sujeito sobre o outro, de um grupo sobre o outro.

2. O poder carrega traços atávicos da pré-história humana, e destes, a função paterna talvez seja o mais presente até hoje. Pai no sentido de quem nutre nossa existência, mas também aquele que tem o poder de acabar com ela – lembram de Abraão, que ia sacrificar seu filho Isaac a pedido de Deus?. Não me refiro aqui apenas ao pai biológico, mas também ao pai fantasmático, construído pelo nosso imaginário. O Sol, por exemplo, para sociedades primitivas representava esse tipo de pai – nutria, alimentando a vida, mas matava nas secas – , ou o mar, para primitivos da Polinésia, ou o vulcão, para aquelas tribos que viviam em suas cercanias. Deus, esse conceito abstrato que move parte importante da humanidade ao longo da sua história, é o herdeiro desses traços atávicos a que me referi. Mais tarde, com o Estado moderno, ele encontra um outro herdeiro, para dividir seu poder com ele.

3. O Estado moderno, que nos trouxe – ao longo de guerras e mais guerras – aos regimes democráticos atuais, é a suprema instância civilizatória, embora lute, com suas leis e suas instituições, contra as mesmas forças primitivas que insistem em nos desafiar, e se reproduzem, latentes, em cada ser humano que nasce, com suas pulsões, ascendendo à cultura, por meio da linguagem e do desejo.

4. O poder é esse amálgama que dá coesão às sociedades humanas, contendo nossa pulsão, garantindo-nos uma estabilidade possível para uma existência menos pobre e curta.

5. Todo o estamento político, esse “pajé moderno” que intermedia nossa relação com o Estado, opera, em nossa contemporaneidade, essa herança, encapsulada em nobres vestes, discursos e narrativas que nos fazem sentir representados por eles.

6. Entretanto, sem a política e o Estado, voltamos à barbárie, onde “a vida do ser humano é solitária, brutal e curta uma constante guerra de todos contra todos “… (Hobbes)

O SUJEITO E A FUNÇÃO PATERNA

7. O sujeito, oprimido em suas limitações, projeta no líder qualidades que ele gostaria de ter, e sabe que não tem. Todas as suas frustrações, do campo profissional ao afetivo (família, cultura, pátria, etc..), são aliviadas, temporariamente, pois ardorosamente espera que seu líder – detentor imaginário de tais poderes – venha a resolvê-las. Qualquer falha, que provavelmente ocorrerá, deve ser deslocada para o outro, seu adversário, que também tem seu líder e sobre ele deposita as falsas e semelhantes esperanças. Tudo muito parecido com as sociedades primitivas, que sacrificavam virgens e animais nos altares, para conter a fúria dos ameaçadores fenômenos da natureza.

8. Sustentam-se mutuamente, numa teia imaginária tecida com ilusões, medo e ódio contra aquele que é seu oponente, e que pensa o mundo de forma diferente deles – que pode, inclusive, quer seja pela persuasão ou pela força, destruir a sua “confortável” relação imaginária estabelecida, muitas vezes, ao longo de toda sua vida, com seu líder. Alguns definem essa teia imaginária, que dá coesão a um grupo, de ideologia – mas isto é um vasto universo da filosofia, da sociologia e da ciência política, para entrarmos nele agora.

9. Mas por que não podemos abrir mão desses mecanismos artificiais – o conhecimento, a política e as religiões – para dar conta da nossa existência? Porque seria necessária uma estrutura psíquica fortalecida com uma visão de mundo extremamente sólida de conhecimentos e aprendizados, para o sujeito suportar, sozinho, a angústia e a dor de existir – um inexistente ser humano completo.

10. Nosso mecanismo afetivo, constituído pelas relações parentais – pai, mãe e filho – deixa um vazio estrutural, no momento em que se rompe a relação fusional que a criança, totalmente dependente, tem com a corpo da mãe. É a ruptura dessa relação fusional, operada pela interdição paterna, que nos funda com sujeito. É este vazio, o qual carregamos durante nossa existência, que nos permite desejar, sofrer, amar e criar. Alguns conseguem realizar feitos perenes, deixados como legado para a humanidade, enriquecendo nosso processo civilizatório.

OS MECANISMOS PSÍQUICOS QUE REGEM O FANATISMO

11. O fanatismo político, manipulado pelas diversas vertentes ideológicas da classe política, captura o sujeito nessa brecha afetiva que o constitui, e sobre a qual ele é absolutamente alienado, naquilo que de mais valioso constitui sua existência: o desejo.

12. Ser capturado por uma ideologia – com a certeza cega dos fanáticos – dá sentido a uma existência medíocre, finita e sem rumo, conseguindo preencher, enfim, este vazio estrutural com sentimentos de êxtase, euforia e completude.  Entretanto, como tudo é muito frágil, pois fruto de sua relação imaginária com a realidade, este complexo mecanismo de defesa existencial dá início a uma narrativa persecutória, onde, de forma delirante, vai se distanciando cada vez mais, e sem perceber, da realidade, vendo o outro como seu oponente e inimigo, fonte de todas as causas que ameaçam seu sistema ideológico “perfeito”.

13. É preciso alimentar com medo, ódio e preconceito essa fornalha da ignorância e da iniquidade humana, que é o fanatismo.

14. O fanatismo político tem horror à crítica, pois esta tem o poder de destruir seu castelo de cartas imaginário, arremessando-o de volta à angústia de uma existência sem sentido e limitada.

15. Como um selvagem primitivo, o fanático sacrifica em seus altares modernos a razão, principal recurso, construído ao longo de milênios, que nos permite, com tolerância, aceitar nossas limitações e as dos outros, e, sem ódio, preconceito ou medo, exercermos nossa humanidade, entendendo que é da diversidade humana que nos fortalecemos, como sociedade e como sujeito.

DEMOCRACIA…

16. Após longo e sangrento percurso de guerras após guerras, a humanidade chega ao Século XX com duas guerras mundiais com milhões de mortos, a última com tecnologia atômica capaz de extinguir a vida na terra. Algum importante aprendizado aconteceu, forçando a criação de instituições e acordos internacionais que regulassem tamanha irracionalidade. A democracia é a suprema instância lógica possível, capaz de, razoavelmente, conter as primitivas pulsões humanas.

17. Ela tem como base a liberdade do indivíduo em sua relação com o Estado e com o outro; tem como prática a tolerância para com a diversidade humana, e autorregula-se com o exercício de importantes instâncias estruturantes: como a crítica, as eleições que, periodicamente, substituem aqueles que estão no poder, e o sistemático aperfeiçoamento das leis, acompanhando o fluxo evolutivo dos costumes e desejos humanos.

18. A democracia não é um fim em si mesma, ao contrário, é um processo interminável em busca de um aperfeiçoamento contínuo, com avanços, retrocessos e novos avanços – tentando acompanhar o fluxo dos novos tempos, dando-lhe um sentido civilizatório, apesar das forças atávicas primitivas que continuam latentes, a insistir em seu retorno pulsional – a cada agressão de um homem contra o outro, a cada crime, a cada guerra.

19. É, enfim, um sistema de governo que tem suas premissas em nossas imperfeições humanas, eternas e insolúveis, porém sobre estas atua de forma incessante, acolhendo e fortalecendo a diversidade humana, com suas imperfeições e conflitos estruturais, viabilizando um ambiente para convivermos com nossas incertezas e, por meio de um ceticismo ilustrado, sem guerras, construirmos nossas relações sociais.

***

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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