Jean Marc von der Weid
Estamos a 55 dias das eleições mais importantes da nossa história, o momento em que mais de 150 milhões de eleitores vão decidir se a democracia tem um futuro no Brasil. Ou se vamos afundar no prolongamento do desgoverno bolsonarista que arrasou o país em todas as áreas que se pode elencar: economia, saúde, educação, segurança, meio ambiente, relações internacionais, cultura, entre muitas outras. O resultado é desinvestimento, precarização do trabalho, subemprego e persistentes níveis altos de desemprego, endividamento das famílias, pobreza crescente e, o indicador mais importante, os aumentos brutais nos números de pessoas passando fome, ou sofrendo de subnutrição ou má nutrição. Quase 130 milhões de brasileiros e brasileiras. E todos os indicadores da saúde pública mostrando a crescente vulnerabilidade da população frente a um sem-número de doenças, sendo os quase 700 mil mortos e milhões de sequelados por Covid o efeito mais impactante. Além disso, Bolsonaro debilitou as instituições da República, pervertendo setores do Judiciário, acumpliciando-se com o que há de pior no Legislativo e desorganizando o Executivo. Tirando as FFAA de sua missão constitucional para torná-las cúmplices de seus arreganhos golpistas. Para completar, a herança destes horrorosos 4 anos inclui a fratura da sociedade brasileira pela política do ódio e o apelo à violência nas relações entre as pessoas. Nunca houve tão explícito estímulo ao machismo, racismo, homofobia e desprezo pelos povos originários. Nunca houve um ódio tão manifesto contra a esquerda.
Nas últimas semanas surgiu, tardiamente, mas de forma consistente, uma reação dos setores conservadores do “andar de cima” aos descalabros quotidianos do presidente que nos foi mandado pelos deuses para punir os nossos pecados. As Cartas de várias instituições e pessoas de renome se sucederam, defendendo a democracia, as urnas eletrônicas, a paz na campanha eleitoral e o respeito pelos resultados das eleições. Esta resposta aponta para a compreensão, por parte dessas instituições e pessoas, dos riscos golpistas que Bolsonaro representa.
Na reta final deste enfrentamento, Bolsonaro adotou o que eu chamei de tática da “bola ou búlica”: ganhar as eleições ou anulá-las/adiá-las. Bolsonaro ainda espera, aconselhado pelos seus aliados do Centrão, recuperar a distância que o separa das intenções de voto do ex-presidente Lula. Para isso ele abriu os cofres do erário e está fazendo a maior derrama de dinheiro jamais empregada em qualquer eleição brasileira. Está quebrando a economia e a administração, mas isto pouco importa se mantiver o poder. Vai ter sucesso? As pesquisas eleitorais apontam para um avanço das intenções de voto em Bolsonaro nas camadas mais empobrecidas da população. Ainda é grande a distância para Lula, que viu a sua votação nos setores mais bem aquinhoados subir, compensando as perdas no “andar de baixo”. Mas a derrama está só começando e vai chegar aos mais pobres (via Auxílio Brasil, vale gás e outros benefícios) e aos remediados da classe média minguante (via queda nos preços da gasolina) nas próximas semanas. Em um país com um grau de miséria tão elevado e com milhões de famílias em desespero, esta derrama pode ter efeito, e resta saber qual o seu tamanho.
A outra tática do energúmeno que nos preside é insuflar a violência de seus seguidores fanatizados, entre os quais os mais perigosos são os cerca de 700 mil que se armaram a partir das facilidades criadas pelo governo, desde o primeiro ano no poder. Já apareceram os primeiros impactos desta tática, com atentados a manifestações do Lula e o assassinato de Marcelo Arruda em Foz do Iguaçu. Com a ampliação dos atos públicos na campanha, as oportunidades para uma escalada de provocações violentas serão maiores. Podemos prever uma campanha sangrenta, na qual as forças de manutenção da ordem estão perigosamente comprometidas com o bolsonarismo. Elas podem agir, não só como suporte aos provocadores, como também podem atuar como parte das provocações, reprimindo comícios da oposição.
Frente a estes riscos, qual deve ser a tática dos defensores da democracia? Escrevi em outro artigo que não está ocorrendo um movimento concertado de resistência às ameaças, mas reações em separado do “andar de cima” (puxadas pelos autores das Cartas), que faz questão de indicar seu caráter apartidário, e as do “andar de baixo” (puxadas pela frente Fora Bolsonaro), que sempre faz questão de mostrar seu caráter multipartidário de esquerda.
Os organizadores e signatários das Cartas não têm tradição de mobilização de massas, e arriscaram muito convocando atos de leitura das Cartas no dia 11 de Agosto. Além do ato central em frente à faculdade de direito da USP no Largo de São Francisco, dezenas de outras leituras estão programadas Brasil afora, em geral em faculdades de direito. Vamos ver qual a capacidade de convocação que tem este movimento, mas desconfio que não vai ser muito significativo.
Por outro lado, a esquerda mobilizada pelo Fora Bolsonaro decidiu aderir aos atos convocados pelo “andar de cima”. Também vamos ver qual a capacidade de convocação que ela vai mostrar. No ano passado, este movimento chegou a levar até 700 mil pessoas, que se reuniram em mais de 400 cidades em todo o país e no exterior, no seu momento mais importante, denunciando as ameaças antidemocráticas do energúmeno. Entretanto, este movimento acontece agora em plena campanha eleitoral, onde o foco está nos candidatos e não nos temas de interesse geral (democracia, etc).
Lula tem conseguido levar dezenas de milhares de apoiadores nos comícios que realizou até agora, no Rio de Janeiro, Fortaleza e Teresina. Em cada um desses lugares, a participação foi maior do que nos atos do ano passado. Mas Lula não vai participar destas manifestações do dia 11 e não convocou seus seguidores a aderir. Ele preferiu convocar sua base a “tomar as ruas” até o fatídico dia 7/9, o Dia da Independência, sequestrado pelo bolsonarismo e marcado como meta das suas provocações, inclusive misturando desfile militar das FFAA e das polícias militares com comício para seu gado.
Tomar as ruas? Como fazer isso? Parece que a estratégia é promover uma sequência de grandes comícios, capital por capital. Isto corresponde à tradição das campanhas eleitorais e aos hábitos da bolha da esquerda que sempre mediu forças em grandes atos.
Me pergunto se não seria algo mais impactante, não do ponto de vista de mídia, mas de participação, se os atos pela democracia e/ou atos de campanha eleitoral fossem descentralizados e multiplicados por mil. É mais fácil mobilizar o povão em atos políticos perto de seu local de moradia do que no centro das cidades. Para os atos centralizados, quem vai é a militância ativa, e não os simpatizantes menos ideológicos. Por outro lado, para buscar a participação do povo que não é parte da bolha da esquerda vai ser preciso apelar para consignas bem concretas, que atraiam os mais pobres e necessitados. Fazer um comício no bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro, por exemplo, vai cobrar a defesa de um programa de “fome zero”, de pleno emprego, de melhoria de renda, de anistia de dívidas, de controle da inflação. Os temas democráticos podem entrar como elemento educativo, mas dificilmente serão elemento mobilizador entre os mais pobres. E como Lula não pode estar em todos os bairros de todas as cidades, as mobilizações terão que se apoiar na capacidade de convocação das entidades populares e partidos de oposição, e de seus candidatos a governador, senador e deputados. Será viável?
Lula não apontou uma orientação para seus seguidores sobre como lidar com as provocações do bolsonarismo. Tomar as ruas tem muitos riscos de situações de enfrentamento, que não deixarão de ocorrer, sobretudo se as polícias não coibirem os provocadores. Se a oposição adotar uma tática combinada de grandes comícios com o Lula, e de pequenos comícios de bairro, onde se situam os riscos maiores de provocações? Já vimos, no caso do ataque de Daniel Silveira e seus brutamontes a uma caminhada da campanha do Freixo com Jandira Fegalli na Tijuca, que mesmo um grupo pequeno pode intimidar. As manifestações por bairro teriam que ser mais expressivas, e se multiplicarem com simultaneidade, para que os bolsomínios não possam concentrar suas forças. O terrível é que basta um provocador armado para criar uma situação de caos em uma manifestação popular.
Vamos viver tempos de muita angústia, a exigir cabeça fria e corações ardentes.
P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?
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