O episódio dos 18 do Forte de Copacabana ocorrido há exatos cem anos, em 1922, é um marco da intervenção militar na vida política nacional. Ele inaugurou um período histórico que a rigor só se encerraria com a redemocratização do país, em 1985.
Os tenentes dos anos 20/30 do século passado foram os generais de 1964, quando finalmente se erigiram em poder.
Por um lado, o então tenente Humberto de Alencar Castelo Branco, que mais tarde seria o primeiro presidente do regime militar, foi um legalista que não apoiou levantes como a Revolta dos 18 do Forte, a Revolta Paulista e a Comuna de Manaus, ambas em 1924, ou mesmo a Coluna Prestes de 1924 a 1927.
De outro lado o segundo presidente do regime militar, Arthur da Costa e Silva, foi um tenentista desde a primeira hora.
E entre os governos militares quem mais expressou o nacionalismo autoritário latente nos levantes das primeiras décadas do século passado foi Ernesto Geisel.
Quando tenente, Geisel participou ativamente da Revolução de 1930, ao lado dos também tenentes Juraci Magalhães e Agildo Barata.
Para entender o tenentismo daquelas décadas é preciso retroceder em levantes anteriores marcados pela ideia da “refundação da República”, por meio da volta ao poder dos militares florianistas e positivistas. O levante da Escola Militar no governo de Prudente de Morais, primeiro civil eleito presidente pelo voto, e a sublevação da mesma escola no episódio da “Revolta da vacina” teve como motor o entendimento de que a República tinha sido corrompida por governos civis alicerçados na aliança das oligarquias paulistas e mineiras. Desde essa época o Clube Militar transformou-se em caixa de ressonância das insubordinações dos militares.
Os “florianistas” voltariam ao poder pela via do voto, quando o marechal Hermes da Fonseca elegeu-se presidente da República. O marechal foi eleito porque a aliança café com leite (São Paulo / Minas Gerais) não chegou a um candidato comum, com a oligarquia mineira se aliando ao Rio Grande do Sul positivista de Borges Medeiros. O governo do marechal foi marcado por sua “política salvacionista”, com a intervenção militar em vários estados para deslocar do poder suas oligarquias. A mais célebre se deu no Ceará, quando a intervenção de tropas teve como resposta à revolta liderada pelo Padre Cícero.
Hermes da Fonseca esteve no epicentro da crise militar do governo de Epitácio Pessoa, que desaguaria no episódio dos 18 do Forte. Sob sua presidência, o Clube Militar deu fórum de verdade às famosas cartas de Arthur Bernardes, na qual o então candidato para suceder a Epitácio Pessoa teria chamado o marechal Hermes de “sargento rude”. A carta foi obra de um falsário, como se provou depois. O episódio levaria à prisão do marechal em 2 de julho e o levante do Forte de Copacabana se deu em protesto contra sua prisão. O governo de Arthur Bernardes enfrentou ainda novo levante militar em 1924 e a coluna Prestes. Foram quatro anos de estado de sítio ininterrupto.
O tenentismo expressava também a insatisfação de uma incipiente classe média urbana com os padrões de moralidade da República Velha, onde a corrupção campeava e a eleição se dava a bico de pena, com as oligarquias se perpetuando no poder. Mas seria um equívoco entendê-lo como um movimento republicano e democrático.
Na verdade, reproduzia a concepção salvacionista que atribuía aos militares a missão de regenerar a República e de intervir na vida política nacional. Tem razão Boris Fausto na sua afirmação de que o tenentismo desaguou em dois projetos autoritários: o Estado Novo, ao qual aderiu a maioria dos tenentes rebeldes dos anos 20 e o levante comunista de 1935, liderado por Luiz Carlos Prestes e Agildo Barata.
O salvacionismo estava presente na volta da missão militar da Alemanha, em 1912, quando um grupo de jovens oficiais funda a revista Defesa Nacional, inicialmente voltada para a modernização do exército e sua profissionalização. A revista passa a defender que os militares deveriam se pronunciar sobre temas econômicos e políticos, pois o Brasil era um país jovem, sem instituições políticas sólidas. Pode-se dizer que a revista deu os fundamentos para a existência do que Oliveiros Ferreira chamou de “partido fardado”.
A cabeça dos militares da geração dos anos 20/30 seria fortemente influenciada pelo pensamento nacional-autoritário de dois intelectuais: Alberto Torres e Oliveira Viana. Principalmente este último, autor do livro Populações Meridionais do Brasil. Sua tese principal era de que a modernização do Brasil só se daria por meio de um governo forte e centralizado, uma vez que o liberalismo encontrado no pensamento europeu e anglo-saxônico não tinha cabimento no Brasil.
Oliveira Viana deu as bases teóricas para o Estado Novo e para a disseminação do nacionalismo autoritário entre os militares que aderiram à Revolução de 1930. Entre eles, Siqueira Campos, Juarez Távora, Eduardo Gomes e João Alberto. Parte dos tenentes passaram a defender a aliança com um ramo da oligarquia – a gaúcha – para chegar ao poder. Getúlio, como os tenentes rebeldes, era um positivista.
Os tenentes vitoriosos de 30 disputaram a hegemonia da Revolução com os “políticos tradicionais”. Não gratuitamente, Juarez e João Alberto se opuseram à Constituinte de 1934 por ver nela o caminho para o retorno ao poder das velhas oligarquias. O clube Três de Outubro passa a ser a trincheira da defesa dos ideais revolucionários que inspiraram o tenentismo. Explicitamente Juarez Távora defende que, em vez da Constituinte, o governo deveria marchar para uma ditadura modernizadora. Seu pleito seria atendido em 1937, com a decretação do Estado Novo.
Sim, Oliveira Viana fez a cabeça de gerações e gerações de militares. Seu pensamento influenciou fortemente a formação da Escola Superior de Guerra, em 1949. Seus fundadores foram antigos tenentes, como Osvaldo Cordeiro de Farias, seu primeiro comandante, e Juarez Távora. O próprio Geisel diria, décadas depois, que o autor de Populações Meridionais do Brasil teve grande influência na sua formação. A concepção geopolítica do general Golbery do Couto e Silva – um dos principais teóricos da doutrina de segurança nacional elaborada nos anos 50 na Escola Superior de Guerra e um dos criadores do Serviço Nacional de Informações – com a ocupação do Centro-Oeste e da Amazônia, tem muito a ver com o pensamento do maior teórico do nacionalismo-autoritário. É possível perceber a influência de Oliveira Viana nos slogans do período da ditadura militar: “Brasil, ame-o ou deixe-o”, “Integrar para não entregar”, bem como nos projetos Brasil-Grande Potência.
Se olharmos para o passado, perceberemos que o exército brasileiro, desde o advento da República não foi o “grande mudo” em matéria de política, como defendia o marechal Cândido Rondon, inspirado no pensamento do marechal Gamelin, que chefiou a missão francesa no Brasil do início dos anos 20.
O exército só se dedicou exclusivamente às suas funções constitucionais com a redemocratização do país, em 1985, propiciando ao país o maior período de sua história sem intervenção militar ou quartelada.
O retorno dos militares à política é um fenômeno recente, com a aliança estabelecida com o presidente Jair Bolsonaro. Há quem veja nessa aliança a ressureição do espírito do tenentismo, particularmente do pensamento autoritário de Oliveira Viana. Em maio de 2022 os institutos Villas Boas, Sagres e Federalistas, ligados ao mundo castrense, apresentaram o projeto coordenado pelo general Eduardo Rocha Paiva, seu Projeto de Nação – O Brasil em 1935. O projeto diz que o Brasil está ameaçado pelo globalismo, que conta com aliados poderosos no Brasil e insinua uma aliança com o bolsonarismo até 2035.
Cem anos depois da sublevação dos 18 do Forte, o salvacionismo ainda se apresenta como a ferramenta para a modernização e desenvolvimento do Brasil. Tinha razão o filósofo autor da frase segundo a qual a história acontece primeiro como tragédia e depois como farsa.
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Hubert Alquéres é Secretário Estadual de Educação do Estado de São Paulo e membro da Academia Paulista de Educação
P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?
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