Helga Hoffmann
Pode ser que a queda de Nicolás Maduro tenha começado, como anunciaram alguns jornalistas depois de 23 de janeiro, quarta-feira, quando surgiu um novo Presidente da Venezuela, Juan Guaidó. Um analista político, de tão animado, chegou a dizer que antes de 48 horas Maduro seria morto por militares – mas tal prazo expirou sábado nove da noite. Por ora. Maduro continua no Palacio Miraflores, e o Comando Militar, garantia de sua permanência, reiterou a lealdade das Forças Armadas na voz do Ministro da Defesa, Gal. Vladimir Padrino López. Comentou-se que a declaração demorou mais de doze horas depois que o jovem Guaidó, perante uma multidão surpreendente e compacta, fez seu juramento solene como “Presidente Encargado” da Venezuela. Estendeu o braço direito no juramento a céu aberto e a multidão repetiu o gesto jurando permanecer na luta por democracia, em Caracas e em comícios em mais de 50 outras cidades da Venezuela e muitas cidades no exterior.[1]
Dessa vez as manifestações populares foram longamente preparadas. Não começaram repentinamente, como em 2017, quando foram provocadas pela sentença do Tribunal Supremo de Justiça, aquele composto por “chavistas”, que tornou nula a imunidade dos deputados da Assembleia Nacional (AN) dominada por oposicionistas. Desde maio de 2018 a AN e todos os partidos oposicionistas vêm denunciando a reeleição de Maduro como fraudulenta e Maduro como usurpador do poder, insistindo que este se tornaria um presidente ilegítimo no novo mandato que começaria em 10 de janeiro de 2019. Mas nesse dia Maduro tomou posse aparentemente sem turbulência.
A surpresa do dia foi Juan Guaidó, que se tornara Presidente da Assembleia Nacional em um acordo multipartidário apenas cinco dias antes, quase por falta de opção, pois, dos líderes oposicionistas mais conhecidos, um está preso, outro refugiado na Embaixada do Chile. Guaidó falou numa conferência de imprensa muito concorrida, e informou que não reconhecia Maduro como Presidente, que a posse era nula; conclamou as Forças Armadas e a comunidade internacional a agir contra a fraude eleitoral. Na sede do PNUD em Caracas, falou a alguns milhares e declarou-se disposto a assumir a Presidência nos termos dos artigos 233 e 333 da Constituição venezuelana, que determinam que o Presidente da Assembleia Nacional assuma as funções de Presidente da nação quando este cargo está vago. E a AN considera vago o cargo, já que, depois de uma eleição fraudulenta, Maduro não pode ser considerado Presidente legítimo. Guaidó disse que a AN estava preparando uma lei de transição, que incluía uma anistia geral para os militares e a convocação de novas eleições em 30 dias. Mas disse que precisava de apoio maciço da população nas ruas e o apoio da comunidade internacional para tornar realidade tais propostas.
Até aí tratava-se apenas de uma declaração de intenções de Juan Guaidó. Ao que parece havia um cuidado para não dar argumentos à SEBIN (Serviço Bolivariano de Informação) para prendê-lo. Houve forte reação da contrapropaganda dos defensores de Maduro: o que de mais ameno se disse de Guaidó foi “muchachito” e “presidente de twitter”, além das costumeiras acusações de “títere do capital americano” ou “boneco de gringo” nas repetidas “conspirações externas” em que os Estados Unidos, agora, ganham a companhia dos governos latino-americanos atacados como “neoliberais e de direita” além de “xenófobos que querem invadir a Venezuela”. Os governos da Rússia e da China logo reconheceram o Presidente Maduro. Já a Assembleia Nacional reagiu tratando de conclamar toda a população para a grande marcha do dia 23 de janeiro.
A data escolhida para as manifestações é simbólica, era dia de comemorar a liberdade: em 23 de janeiro de 1958, o ditador Pérez Jimenez foi deposto por setores rebelados das Forças Armadas venezuelanas e se exilou, inicialmente na República Dominicana. A mobilização para comemorar os 61 anos da derrubada do ditador dessa vez parece que foi além do uso das redes sociais. Sabe-se que foram distribuídas em alguns setores cópias com o texto da prometida lei de anistia. A oposição dessa vez chegou às “barriadas”, os bairros pobres nos morros de Caracas, onde até a pouco era perigoso criticar o chavismo. E há evidência que houve contatos coordenados da oposição com autoridades estrangeiras diversas, tanto para que houvesse atenção para os eventos e o perigo de violência do governo, quanto para deixar evidente que os passos da oposição não seguiam orientação dos ianques.
Domingo de tarde, 13 de janeiro, passou-se algo bem estranho: Guaidó foi preso e solto. A SEBIN parou o carro em que Guaidó se dirigia de Caracas para a costa e o prendeu, em plena luz do dia. A ação foi filmada e em poucos minutos as redes sociais espalhavam a notícia de “sequestro do presidente Guaidó” mas, antes que se soubesse do seu paradeiro, veio a notícia de que havia sido solto, e que já estava a caminho de Vargas como previsto, para um comício. O governo Maduro declarou mais tarde que a operação da SEBIN havia sido irregular e culpou um funcionário que teria agido para causar dificuldades ao governo. Esses agentes da SEBIN depois teriam sido presos. Segundo a versão dos jornalistas do Financial Timesna Colômbia, J.P. Rathbone e Gideon Long, ao ser preso, Juan Guaidó conversou com os agentes da polícia secreta sobre a lei de anistia que a AN havia elaborado, para encorajar soldados insatisfeitos a abandonar o governo de Maduro. Os soldados teriam perguntado se a lei era constitucional e, diante da afirmativa de Guaidó, o soltaram. Também correram boatos de que na verdade Guaidó teria mantido negociações com gente do núcleo duro do governo. Talvez o episódio mostre apenas que há rachaduras no núcleo de poder.
Rachaduras causadas, talvez, pela piora, por anos seguidos, do precário nível de vida da população, agravada nos dois últimos anos pela hiperinflação que se acelera mês após mês com a promessa de Maduro de que, agora sim, vai controlar os preços. Já analisamos em edições anteriores da “Será?” (Venezuela: a ditadura jogou fora seus disfarces, Venezuela: uma economia que o Estado arruinou, Venezuela: a tragédia e a ameaça) como a economia venezuelana foi gradualmente destruída pela ditadura. A receita das exportações de petróleo é hoje menos de metade do que era no início do primeiro mandato de Maduro, afetada pela queda do preço internacional do barril, mas muito mais pela espantosa queda da produção na Venezuela, que hoje não chega a 60% do que era quando Maduro assumiu em 2013. Essa redução da receita reduziu a capacidade de o governo atender sua rede de política clientelística, tanto de dádivas, ajudas assistenciais e bônus para a população dos bairros pobres, quanto de oportunidades de enriquecimento para ministros militares que controlam o comércio exterior, a entrada de divisas e metade das importações de alimentos e medicina.
O fato é que as marchas de 23 de janeiro reuniram um mar de pessoas com dimensões inesperadas até então. E Juan Guaidó, perante a imensa multidão e quase instado por ela, fez o juramento famoso e se declarou “Presidente Encargado”. Os Estados Unidos reconheceram Juan Guaidó como presidente no mesmo dia que o Brasil, junto com 11 dos países do Grupo de Lima (a destacar Canadá, Argentina, Colômbia, Peru e Chile), seguidos da Organização dos Estados Americanos.
Na reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU, convocada pelos Estados Unidos em 26 de janeiro para que reconhecessem Guaidó, o representante da Venezuela pôde protestar contra a ingerência nos assuntos internos, e que ninguém imporia prazos aos venezuelanos, a propósito do prazo de oito dias que a União Europeia deu para que Maduro convocasse eleições livres, ou então também reconheceria Juan Guaidó como Presidente. Além dos membros permanentes que são França e Reino Unido, a Alemanha é atualmente membro do CS, e esses três países, junto com a Espanha, reiteraram a posição da UE. A Rússia reclamou que não havia razão para tratar da Venezuela na ONU, pois não constituía ameaça à paz e à segurança internacional: meia-verdade apenas, se consideramos a crise humanitária de grandes proporções e o papel desestabilizador que sempre tem, em toda parte, a chegada repentina de grandes massas de refugiados. Uns 60 países apoiam Guaidó. O Parlamento Europeu reconheceu o Presidente Encarregado por 439 a 104. Mas há vários governos mais ou menos autocráticos que ainda apoiam Maduro, não apenas Cuba, Nicarágua e Bolívia, mais perto, também Turquia, Iran e Síria. Fica por explicar porque a assim chamada “esquerda latinoamericana”, no governo ou fora dele, continua leal a Maduro. México e Uruguai ainda querem tentar, mais uma vez, a mediação entre Maduro e oposição, depois de tantas outras tentativas, até do Papa. Um representante do Vaticano estava presente à posse de Maduro.
Novas manifestações estão sendo convocadas para sábado, quando termina o prazo dado pela União Europeia. Há muita tensão, e muita intriga a ameaçar a unidade recém-conquistada da oposição. Há críticos internos segundo os quais a estratégia de Guaidó entrega aos militares a tarefa de depor Maduro, com o risco de, de novo, substituir uma ditadura militar por outra. E a maior parte dos oposicionistas sempre criticou aqueles que esperavam que o governo chegasse a um colapso para justificar a chamada dos “marines”, e então se preocupam com o repentino ativismo do conselheiro de segurança John Bolton, quando se imaginara que os Estados Unidos estavam abdicando das antigas pretensões de guardião da ordem mundial. Moises Naim, o venezuelano que é um dos pensadores mais influentes do mundo, tem tratado de explicar, inclusive ao público americano, que a crise da Venezuela não é questão militar, que uma invasão militar não é uma estratégia séria, é uma fantasia de vingança que não trará de volta a democracia, apenas tornará uma situação péssima ainda pior.[2]Lamentavelmente alguns dos tuites de Trump em apoio a Guaidó alimentam essa fantasia, além de abrirem um flanco para as acusações de Maduro. Ao mesmo tempo, mais uma vez, é preciso denunciar a ferocidade dos serviços de segurança de Maduro, treinados por cubanos, contra a população: segundo a ONU, nas mobilizações desta semana, houve o registro de pelo menos 35 pessoas mortas e mais de 850 presos, inclusive vários jornalistas estrangeiros.
Maduro determinou bloqueio dos bens de Guaidó e que impeçam sua saída do país. Será obedecido? Apelou para a unidade das Forças Armadas. As novas sanções financeiras dos Estados Unidos à PDVSA (anunciadas 28 de janeiro) reduzirão ainda mais a receita do petróleo que ainda sustenta o governo, seus militares e sua clientela. Quanto ainda durará? Por ora, fora apoio moral, o que os vizinhos podem fazer para minorar o sofrimento do povo venezuelano é acolher seus refugiados. A AN aprovou lei que permite o recebimento de ajuda externa (o que estava proibido por Maduro). Guaidó pediu a abertura de um corredor humanitário até a fronteira para receber a ajuda e apelou aos militares que permitam essa ajuda.
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[1]O Brasil reconheceu imediatamente o novo Presidente Encarregado. A nota do Itamaraty foi emitida no mesmo dia no fim da tarde: “O Senhor Juan Guiadó, Presidente da Assembleia Nacional venezuelana, assumiu hoje, 23/01, as funções de Presidente Encarregado da Venezuela, de acordo com a Constituição daquele país, tal como avalizado pelo Tribunal Supremo de Justiça (TSJ).
O Brasil reconhece o Senhor Juan Guaidó como Presidente
Encarregado da Venezuela.
O Brasil apoiará política e economicamente o processo de transição para que a democracia e a paz social voltem à Venezuela.” (www.itamaraty.gov.br)
O TSJ mencionado é o exilado. E a sensatez do Gal. Hamilton Mourão, então no exercício da Presidência do Brasil, veio à tona: declarou que o Brasil não apoia nem apoiará nenhuma intervenção militar.
[2]Ver, por exemplo, Moisés Naim e Francisco Toro, “Venezuela’s Suicide: Lessons From a Failed State”, Foreign Affairs, novembro-dezembro 2018, pp.126-138, e www.foreignaffairs.com/print/1123064.
P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?
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