Elimar Pinheiro do Nascimento

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O meu caro e jovem estudante, depois de algumas sugestões de leitura que lhe fiz, retornou com algumas novas reflexões que transmito ao leitor. Alertei-o de que este tema tende a ser algo do passado. Primeiro, porque as pessoas em geral não gostam de politica e, segundo, entre os que gostam poucos são os que acreditam ou entendem o que significa esquerda e direita. Em terceiro, e por fim, o termo perdeu sentido depois que comunistas, estalinistas e maoístas fizeram o que fizeram no mundo, e o PT no Brasil. Contei-lhe a historia de um piloto de avião particular que me disse que o PT não era de esquerda porque estava no poder. Esquerda para ele é quem está na oposição. Lembrei-me de Deleuze que, em uma entrevista, falou não ser possível existir governo de esquerda. Mas eis o que me contou este jovem estudante atormentado e bem-intencionado.

A concepção de esquerda (e, consequentemente, de direita) data do 11 de setembro de 1789, quando os deputados da Assembleia Constituinte, reunidos para decidir sobre o direito de veto ao rei Luis XVI, se dividen espontaneamente de um lado e do outro do presidente; a esquerda, os opositores ao veto, os jacobinos; a direita, os a favor do rei, os girondinos. Esta origem marca claramente que esquerda e direita é para o povo francês um fato histórico fortemente ideológico que se traduz em posições políticas que variam no tempo e no espaço.

Por exemplo, ser liberal no Brasil é ser de direita, mas nos Estados Unidos, é ser de esquerda. A acepção muda segundo o país, mas também varia no mesmo país, segundo o tempo. Dessa forma, ser liberal no Brasil na época da Ditadura Varguista, como Oswaldo de Aranha, que se posicionava a favor dos Aliados (Grã-Bretanha, USA e URSS, entre outros) contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) era ser de esquerda, ao oposto de Góes Monteiro, que com suas posições nacionalistas e intervencionistas, mas claramente autoritárias, posicionando-se a favor de Hitler e Mussolini, era de direita. Esse arranjo político da Segunda Guerra Mundial mostra como é volúvel as classificações de posições politicas, pois liberais e comunistas se colocavam juntos contra os fascistas e nazistas. Mas, logo em seguida, se colocaram em posições opostas durante a guerra fria, ou seja, o período que sucede àquela guerra. Estes simples exemplos mostram como as categorias esquerda e direita são mutáveis no tempo e no espaço.

Segundo meu estudante, as grandes ideologias do século XIX e XX, e ainda hoje persistentes, nasceram do movimento Iluminista do século XVIII na Europa, o liberalismo e o socialismo. Cada uma destas ideologias tem vertentes distintas (e descendências diferentes), e contraditórias entre si. De forma simples, pois as distinções no interior de cada uma daquelas ideologias são sofisticadas, filosoficamente falando, há um liberalismo democrático, como há um liberalismo autoritário. E há um socialismo ditatorial e outro democrático. É possível, assim, afirmar que uma segunda escala de classificação das ideologias e posições políticas poderia ser aquela que tem nos seus extremos posições, tais como, democracia e autoritarismo. Esta leitura torna menos simples a classificação esquerda/direita e liberal/socialista, pois na esquerda poderíamos ter socialistas e liberais democráticos, e na direita, socialistas e liberais autoritários. Porém, o mundo é mais complexo. O regime socialista na URSS era tido após a Segunda Guerra Mundial por muitos partidos políticos brasileiros como de esquerda, e o regime americano, democrático, como de direita.

Há também outras leituras distintas destas anteriores, muitas. Uma delas tenta dividir as ideologias e as posições politicas delas decorrentes entre a favor ou contra as mudanças sociais. O que colocaria na esquerda os reformistas e na direita os conservadores. Mesmo aqui, porém, teríamos que ter atenção às nuances, e distinções várias. Trata-se, em última instância, de uma nova escala de classificação das posições politicas em que o apoio ou a oposição à mudança social classificaria as posições e os atores políticos.

Há uma outra distinção, entre tantas existentes aqui e acolá, que se refere ao papel do Estado. Aqueles de posição de esquerda defenderiam o intervencionismo estatal na economia e os de direita seriam contra, preferindo a supremacia da lógica do mercado. Assim, os que defendem uma economia planejada e controlada pelo Estado seriam de esquerda, enquanto que aqueles que defendem a liberdade da lógica do mercado seriam de direita. O fundamento desta distinção reside no fato de que o mercado é produtor de desigualdades, e para que estas não cresçam ao ponto de comprometer a democracia o Estado deveria intervir. Se a desigualdade é legítima em uma economia de mercado seu crescimento pode comprometer esta mesma legitimidade, afinal, a sociedade moderna articula, simultaneamente, um espaço de desigualdade (mercado) e um espaço de igualdade (politica). Porém, nesse raciocínio muitos liberais defendem que em determinadas circunstancias e particularmente para impedir o crescimento excessivo da desigualdade o Estado deveria intervir.

No Brasil, hoje, há uma clara tendência a classificar de direita não apenas os autoritários, que defendem regimes ditatoriais, como o existente no Brasil entre os anos 1960/1980, mas também os liberais, que defendem regimes políticos democráticos, como o americano e o europeu.  E os de esquerda seriam aqueles que defendem o intervencionismo estatal. Isso significa que a nomeação de esquerda e direita é resultado de um embate político-ideológico, uma construção social, e não um dado objetivo e empírico. Desde que alcançou o poder o PT conseguiu fazer prevalecer, em amplos segmentos sociais, a ideia de que eles são de esquerda e todos os opositores, de direita. Mais ainda, e recentemente, que todos os que estão em uma posição oposta, além de serem de direita são pró regime militar. O que é um absurdo e nada tem a ver com os fatos.

A conclusão de meu estudante é que, em todos estes casos, estamos sempre em frente de simplificações e definições utilitaristas, de conveniência, segundo os interesses dos classificadores.

Há disjunções interessantes que podem ser construídas a partir destas leituras, e que meu caro e jovem estudante formulou da seguinte maneira:

Se tomarmos a democracia e a justiça social como valores de classificação temos na esquerda as posições: socialista democrática, reformista, social democrata e liberais, pois todas elas reconhecem que a sociedade é injusta e deve ser modificada, porém, estas mudanças não podem ser obtidas pela força, mas pela persuasão, pelo convencimento, pelo jogo democrático da política. De outro lado, temos os conservadores, reacionários, autoritários, neoliberais, fascistas e comunistas que ou querem a manutenção do status quo ou as mudanças pela força. É claro que cada um destes dois agrupamentos possui diferenças, e mesmo contradições em seu interior. Não formam blocos homogêneos.

No primeiro bloco a mudança se dá por meio da reforma das instituições e não por sua negação ou ruptura, as mudanças ocorrem em decorrência de um aperfeiçoamento institucional. Portanto, a plataforma comum seria a de mudar as instituições, gradativamente, para obter maior justiça social, maior equidade, oportunidades de desenvolvimento mais ou menos iguais para todos os cidadãos. Haveria um consenso sobre o geral: a sociedade é injusta, com bolsões de pobreza e forte desigualdade social, e precisa ser modificada, e esta mudança não se obtém com rupturas, mas com aperfeiçoamento institucional, que ao mesmo tempo em que consolida a democracia reduz as injustiças. Poder-se-ia chamar de esquerda democrática, para diferenciar da direita conservadora ou reacionária que não quer a mudança, mas a manutenção do status quo, e da direita nazista e fascista, mas também comunista, que querem a mudança de forma violenta ou autoritária.

Mostrei ao meu caro estudante que esta era uma leitura interessante e ilustrada – parabenizei-o pelo esforço – mas que, aparentemente, batia de frente com a realidade brasileira, com nossas peculiaridades, com nossa cultura política. Em outros termos, era um esquema interessante e inteligente, mas que me parecia insuficiente para explicar nossas singularidades.

Primeiro, comunistas, fascistas ou nazistas são minorias insignificantes no Brasil. Claro que há os autoritários ou saudosos do regime militar, mas eles não alcançam nem de longe 10% do eleitorado brasileiro. Mesmo os eleitores de Bolsonaro, que seria o melhor representante desta vertente, misturam este público com outros não propriamente autoritários, mas conservadores, que temem mudanças excessivas e disruptivas nos costumes. Os comunistas, e suas vertentes autoritárias da mudança, também têm pouca representação política, apesar da forte presença marxista nas Universidades públicas brasileiras. Os conservadores seriam uma vertente bem mais substantiva, porque teria sustentação na cultura popular brasileira, que prisma pelo conservadorismo, ou como cosmovisão própria ou como receio de mudanças radicais ou ameaçadoras de suas crenças, costumes e expectativas. No outro bloco é difícil no Brasil fazer conversar socialistas democráticos com liberais. Ambos pouco expressivos politicamente, e revestidos de fortes preconceitos mútuos.

Finalmente, onde se encontraria a vertente populista da política brasileira? Majoritária e presente em partidos que se dizem de esquerda ou de direita? E a vertente nacionalista- intervencionista? E as novas expressões ideológicas presentes no movimento ambientalista, no horizontalismo democrático, e mesmo entre os anarquistas? Onde se encontram os defensores dos direitos humanos, os movimentos sociais não tradicionais como os sem terra e os sem teto? E o corporativismo típico dos trabalhadores formais, dos trabalhadores da função pública e do empresariado?

Como formular uma classificação mais colada com nossa história e trajetória política? Com nossas peculiaridades e cultura? Como classificar as crenças da população nesse esquema de esquerda e direita? Seria possível? Não seria excessivamente empobrecedor?

Saímos do encontro com novas interrogações, novas consultas, novas reflexões. E talvez voltemos a nos encontrar.

***

(*) Sociólogo, professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável e pesquisador colaborador do Centro de Desenvolvimento Sustentável, ambos da Universidade de Brasília.

 

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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