Helga Hoffmann

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“Estamos cercados de todo lado, já nada pode nos salvar. A morte cai do céu. Lembrem-se que existia uma cidade chamada Aleppo, e que o mundo a apagou do mapa e da história.” A mensagem no WhatsApp, na terça 13 de dezembro, era do médico legista Abou Jaafar. Sob o bombardeio de aviões sírios e russos, intensificado desde meados de novembro, mais de 100 mil civis haviam escapado da zona rebelde em Aleppo, refugiando-se em sua maioria nas zonas controladas pelo governo. Agora nem essa possibilidade restava, já não se conseguia sequer retirar dos escombros os feridos.

Havia se completado o cerco das zonas rebeldes de Aleppo pelas forças governamentais apoiadas pela aviação da Rússia e milícias aliadas, do Líbano, do Iraque, do Afeganistão, do Irã. Uma reunião de urgência do Conselho de Segurança da ONU fora convocada.  Na madrugada seguinte deveria começar a retirada de civis, segundo um acordo entre chefes políticos dos rebeldes e o governo sírio. Segundo um dos chefes rebeldes, Yasser al-Youssef, o acordo, impulsado pela Rússia e pela Turquia à margem do Conselho de Segurança da ONU, era de evacuar primeiro os civis e os feridos, e depois os combatentes com armas leves. A Turquia prometera construir um campo para os refugiados de Aleppo na Síria junto à fronteira com a Turquia. O embaixador russo na ONU confirmou o acordo com Ancara. Sem ele, os habitantes da zona leste de Aleppo ficariam à mercê dos soldados de Bashar al-Assad.

Homens, mulheres e crianças se reuniram durante a noite, à espera dos ônibus verdes e das ambulâncias da Cruz Vermelha, para a retirada que lhes havia sido prometida. Na madrugada fria, seis graus centígrados, alguns fizeram pequenas fogueiras para se aquecerem enquanto aguardavam por horas. Mas a retirada dos civis em Aleppo se interrompeu apenas dois dias depois, na sexta-feira (16 de dezembro), quando vários dos ônibus da operação foram incendiados, enquanto fieis e opositores ao governo de al-Assad se acusavam mutuamente da destruição dos conhecidos ônibus verdes.

Segundo a oposição no terreno, em Aleppo, milícias xiitas aliadas de al-Assad haviam bloqueado os ônibus e sequestrado passageiros, pedindo em contrapartida que os rebeldes anti-Assad liberassem duas aldeias da província de Idlib sitiadas por eles, e que os habitantes dessas aldeias fossem igualmente evacuados. Essa exigência foi confirmada pelo birô sírio da TV internacional do Irã, ameaçando que, se os ônibus não entrassem nas aldeias de Foua e Kefraya, o exército sírio retomaria as operações contra os que permaneciam na zona leste de Aleppo. Entendiam que o acordo era de retirada de civis, simultaneamente, de áreas rebeldes sitiadas por forças do governo e áreas leais a al-Assad sitiadas por rebeldes (sem excluir djihadistas do EI, tida como a força dominante no cerco às duas aldeias de Idlib). Hezbollah, o movimento aliado libanês de el-Assad, igualmente anunciou que bloqueara um comboio de civis que saia de Aleppo. Segundo a TV governamental síria, o motivo da interrupção era que os rebeldes haviam tentado retirar armamento pesado e reféns pró-Assad, o que não fazia parte do acordo. A presença de combatentes estrangeiros entre os rebeldes igualmente complicava a logística. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cujas ambulâncias haviam conseguido retirar feridos graves (alguns dos quais recebidos na Turquia), confirmou a suspensão do resgate, apelando por sua retomada e continuidade enquanto fosse necessário.

No sábado, 17 de dezembro, ainda havia milhares de pessoas sitiadas. De 40 mil a 100 mil ou mais, dependendo da fonte. Segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos (sediado em Londres), haviam sido retiradas 8.500 pessoas antes da interrupção. Segundo o Enviado Especial da ONU para a Síria, Staffan de Mistura, restavam cerca de 40 mil civis no reduto rebelde de Aleppo e entre 1500 e 5000 combatentes com suas famílias.

Enquanto isso, a França tentava aprovar no Conselho de Segurança o envio de observadores da ONU para “supervisionar” e “fiscalizar” a evacuação dos bairros leste de Aleppo.

Não tem sido fácil estabelecer com clareza as responsabilidades. Nisso a guerra na Síria não chega a ser exceção, se recordamos que mais de meio século se passou antes que fosse possível analisar com alguma isenção a responsabilidade direta de franquistas e republicanos nos fuzilamentos ocorridos na guerra civil espanhola. A guerra da informação (ou “intoxicação”, a “intox”, na expressão usada por alguns jornalistas franceses) tem corrido em paralelo à dos bombardeios. A diferença agora é que as vítimas, em vídeos divulgados nos jornais internacionais que costumam checar veracidade, nos olham diretamente nos olhos apelando por ajuda, no mesmo momento em que tentam tirar dos escombros familiares e vizinhos ou carregam até a ambulância semidestruída uma criança.

Mesmo assim, é possível que um público de muitos milhões tenha sido “intoxicado” pelo vídeo divulgado em 13 de dezembro em que supostamente “uma jornalista desmonta em dois minutos a retórica da mídia tradicional sobre a Síria”. Vi o vídeo, mostrado pelo jornal francês Libération. A versão com legenda em alemão foi vista 600 mil vezes e uma das versões publicadas no Facebook teve mais de 2 milhões de acessos. Em resposta a uma pergunta feita por um jornalista da Noruega, e sentada diante do logo da ONU, a jovem afirma no mais autêntico inglês que nenhuma organização merecedora de confiança estava presente em Aleppo e que os jornais ocidentais não tinham nenhuma informação confiável sobre a zona, que o Observatório Sírio dos Direitos Humanos e a organização síria dos “capacetes brancos” eram parciais e estariam divulgando informação falsa, acusando o governo sírio de atacar a população civil, “quando todos os que saem desses territórios ocupados dizem o contrário”.

Dois dias depois repórteres do Le Monde e Libération mostraram que a jornalista, Eva Bartlett, falava em vídeo produzido para o jornal Russia Today, que não se tratava de evento organizado pela ONU, e sim, pela Missão da Síria junto à ONU, que o repórter norueguês apresentado como representante dos jornais “tradicionais”, Kristoffer Ronnenberg, correspondente do jornal Aftenpost, não sabia quem seriam os colegas e tinha comparecido porque havia sido anunciada a presença do Embaixador da Síria na ONU, que afinal não apareceu.

Há vários outros exemplos da “guerra da informação”, de ambos os lados. Blogs pró-Assad já disseram que “o último hospital de Aleppo” foi definitivamente fechado inúmeras vezes em fotos de jornais simpáticos aos rebeldes.  Talvez o mais notório é a foto que o representante da Síria mostrou no Conselho de Segurança da ONU, ao negar que o exército sírio estivesse atacando civis. Ali aparece um soldado agachado, e o civil pisa nas costas dele para passar de um lado a outro de um muro. Jornalistas, na grande imprensa que checa fontes, descobriram que a foto não era na Síria, havia sido tirada no Iraque.

À medida que engrossou o fluxo dos refugiados, ao longo dos anos, alguns membros da oposição síria chegaram, vez por outra, a verbalizar arrependimentos em suas análises: o que começou em 2011 como um protesto contra 40 anos de domínio da família al-Assad perdeu o rumo quando se transformou em rebelião armada da maioria sunita. Mais ainda quando foi gradualmente infiltrada por radicais islamistas, e o medo dessa radicalização fez com que algumas minorias se passassem para o lado de al-Assad. Depois de 2012 a oposição síria que alguma vez sonhara com eleições ou um governo compartilhado não conseguiu evitar a mistura com os adeptos do EI. Em Aleppo duas figuras importantes da oposição moderada foram assassinadas por militantes do ISIS (o precursor do EI) no fim de 2013, e só então houve um esforço dos rebeldes para expulsar da zona leste esses radicais islamistas e suas bandeiras negras.  Militantes do exterior foram recrutados por islamistas radicais, em especial de ISIS (sigla inglesa para Estado Islâmico do Iraque e da Síria), e grupos rebeldes moderados e partidários de eleições, como os de Aleppo, perderam força.

Vitória de Damasco? Esvaziada Aleppo, há o perigo que a guerra continue. Aleppo foi o principal reduto rebelde, mas a reconquista completa do território sírio ainda verá outros massacres. O ditador não retomou sozinho o controle do território que ele estava a ponto de perder, quando a entrada da aviação russa alterou o balanço em favor dele. O fato de que o EI retomou a cidade antiga de Palmira no momento em que o exército sírio concentrava a atenção em Aleppo tem sido visto como indicador de que o regime não tem força suficiente para ter de volta o seu país.

E quando será possível enfrentar o gigantesco desafio da reconstrução? Quando os deslocados poderão voltar às suas casas que foram forçados a abandonar? Quando poderão retornar os 5 milhões de refugiados sírios espalhados pelo mundo, principalmente na Alemanha e alguns outros países europeus e no Canadá, e sobrevivendo precariamente na vizinhança, sobretudo na Turquia, no Líbano, na Jordânia, na Grécia?

Quase meio milhão de mortos e quase seis anos de guerra na Síria foi mais de uma vez brandido como prova maior do fracasso e até da inutilidade da ONU. Às vésperas da reunião do Conselho de Segurança convocada para 14 de dezembro, Zeid Ra’ad al-Hussein, o Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, resumia  a impotência:  “A aniquilação de Aleppo, o balanço incrivelmente aterrador, o banho de sangue, o massacre gratuito de homens, mulheres e crianças. Tudo isso quando estamos longe de chegar ao fim desse conflito cruel. Isso que vemos  em Aleppo pode se reproduzir em Douma, em Raqqa, em Idlib. Não podemos deixar que isso aconteça.”

Desde o início do conflito sírio, em março de 2011, o Conselho de Segurança da ONU adotou várias resoluções tentando conter os abusos mais graves, mas o seu impacto foi mínimo. Eram sempre uma condenação moral da ditadura, mas não  previam sanções em caso de não se cumprirem os apelos humanitários. Será necessário examinar com cautela porque nunca foi possível aprovar sanções ou propor uma intervenção que impusesse pela força um fim ao conflito. A complexidade das forças presentes in loco na Síria, os objetivos diversos e entrelaçamentos múltiplos de cada uma delas, inclusive fora do país, são parte da explicação.  Os Estados Unidos, a Inglaterra e outros países da OTAN, ao que parece, ficaram escaldados com os resultados catastróficos das intervenções no Iraque, no Afeganistão, na Líbia. Além disso, as resoluções que continham alguma sanção concreta sofreram veto. Nos últimos anos houve 6 vetos da Rússia e 5 da China a resoluções sobre Síria. Em 2016, os vetos caíram sobre fórmulas para tentar um cessar-fogo. E há também propostas que sequer chegaram à consideração do Conselho de Segurança, como a fantasia francesa de uma resolução para abolir o direito de veto.

O brutal assassinato do embaixador russo em Ancara pode ser interpretado como o grito de um jihadista em favor de Aleppo?  Qual Aleppo? Boa parte da população original da cidade, que tinha 3 milhões de habitantes antes da guerra, jamais ofereceu apoio aos rebeldes armados anti-Assad. Agora a vitória do governo apoiado pela Rússia vinha sob o manto de uma vitória comum contra os fanáticos do Estado Islâmico e de ISIS. E as negociações entre turcos e russos à margem do Conselho de Segurança da ONU, a reaproximação da Turquia com a Rússia negociando a formação de um corredor para retirar os habitantes sitiados nos bairros da zona leste de Aleppo, aparecia como uma ação humanitária para evitar o massacre final por soldados alauitas e xiitas. Os presidentes Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan atuaram rapidamente para que o ato terrorista do jovem policial turco não envenenasse a reaproximação em curso.

Quanto foi ganho na luta contra o EI? A morte do Embaixador Andrey Karlov não altera a configuração preocupante de aproximação entre autocratas de várias tendências. Deve até advertir para o triste fato de que, vencida a oposição moderada em Aleppo, o extremismo do EI parece ser o que sobrou de mais insistente da oposição ao ditador sírio. Não há notícia de demonstrações populares contra a retomada de Aleppo. Nem chegaram a ser muito efusivas as manifestações de alegria nas zonas de Aleppo que não chegaram a abrigar rebeldes armados, mas que foram atingidas pelos seus tiros. Por enquanto, uma população síria exausta está apenas pensando em como sair desse massacre.

A evacuação de Aleppo prossegue lentamente, pela necessidade de coordená-la com a retirada simultânea dos habitantes de Foua e Kefraya, e agora por causa de uma tempestade de neve. O diretor para o Oriente Médio do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Robert Mardini, anunciou em twitter que todos os doentes e feridos em estado grave já foram removidos. Antes que o ano termine al-Assad poderá proclamar o fim da “revolução” em  Aleppo.

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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