Jean Marc von der Weid
Nascido em uma família de classe média alta do Rio de Janeiro, até os cinco anos eu não tinha a menor noção do que era miséria e muito menos do que era a fome. Fome era o que eu sentia quando o estomago roncava na hora de comer. Não se chamava fome, mas apetite. Sim, o Rio tinha mendigos nas ruas, favelas miseráveis e gente com fome, mas estavam fora do meu radar de garoto da zona sul.
Nas férias de julho de 1951 fui mandado para a fazenda da minha tia avó Georgina, a tia Jô, em Vassouras, no vale do Paraíba do Sul. Era uma antiga fazenda de café que se arruinou quando as terras super-exploradas foram perdendo produtividade e as plantações migrando para São Paulo, no século 19. Não era um casarão de barões, mas era um prédio grande, grande demais para uma residência de verão. Parte da casa estava fechada, inclusive o salão de jantar. Comíamos na imensa cozinha. A fazenda produzia alimentos para os patrões e para as 3 ou 4 famílias de moradores que nela trabalhavam. Tinha fartura e diversidade que me impressionavam e eu me distraia ajudando na alimentação de galinhas, patos e perus e recolhendo os ovos. Ou colhendo frutas de todo tipo além de hortaliças. Acompanhava os peões na busca do gado de manhãzinha, e na ordenha das vacas leiteiras. Ou jogando lavagem para os porcos. E aprendendo a andar a cavalo. Era uma vida de sonho para um garotinho urbano.
Tenho uma vaga lembrança do momento em que apareceu o medo nas caras e vozes dos sitiantes e empregados. Estava tomando café e os adultos homens vieram falar com tia Jô dizendo que estavam em risco naquela fazenda isolada da cidade e próxima da rodagem, por onde passavam cada dia mais caminhões cheios de gente. Os retirantes, diziam todos, eram perigosos. Nordestinos armados de peixeiras e desesperados pela fome e miséria estavam invadindo casas de fazenda e ameaçando os moradores. Eles queriam se refugiar em Vassouras por uns dias. Minha tia desprezou as advertências e disse que não sairia dali. No mesmo dia, noitinha, nos demos conta de que estávamos sozinhos, a tia avó e eu e minha irmã mais velha, Betty.
Lembro de perguntar várias coisas para a tia Jô. Quem eram os nordestinos? Por que estavam viajando de caminhão? Para onde iam? Por que atacavam as fazendas? Não me lembro das respostas ou as confundo com o que aprendi depois. Tudo era misterioso e assustador. Mas a tia era valente e decidida. Ela tinha uma garrucha de dois canos, carregada pela culatra e que estava esquecida em uma gaveta onde eu a descobri um dia e passei a brincar de caubói, como nos filmes que eu via nos aniversários lá em casa, alugados à empresa Correia Souza Filmes. O nosso herói de garotos não era o Carlitos do Chaplin, mas o Hopealong Cassidy, montado em seu cavalo branco e matador de índios e bandidos. Mas estou dispersando. A tia armou a garrucha, trancou a casa e fechou-se no seu quarto de dormir, para onde nos levou, eu e minha irmã, para dormir com ela na cama grande do casal. Ela ficou lendo à luz de uma vela (o resto da casa estava às escuras e ir ao banheiro era uma aventura em que o coração pulava) e com a garrucha na mesa de cabeceira. Acordei com o barulho da porta da cozinha sendo arrombada e a tia pegou a garrucha, sentou-se na cama, os dois sobrinhos colados nela e tremendo de medo. O barulho de passos pesados soou pelo corredor e tentaram abrir a porta do quarto. Eu estava com o coração na boca e tremendo, mas a tia não era frouxa e gritou com voz firme: “passo fogo em quem tentar entrar”. Houve um silêncio e depois uma voz surda disse: “ por favor, dona, não queremos fazer mal a ninguém. Estamos mortos de fome e de sede. Pelo amor de Deus, nos ajude”. A tia pensou um pouco e falou: “juntem-se todos na cozinha. Não quero ninguém rondando pela casa. Vou dar comida para vocês”. Quando chegamos na cozinha, as duas crias agarradas nas saias da tia, uns 15 homens estavam sentados à mesa, com os chapéus nas mãos e em silêncio. Ela comandou, com a sua voz autoritária de sempre: “vão se lavar no tanque ao lado da porta, e me ajudem a acender o fogão”. As grandes panelas usadas só nas festas com muita gente foram levadas ao fogão e ela cozinhou arroz, feijão, aipim e outros legumes e fritou um monte de carne de porco e galinha, além de ovos mexidos. Eu e minha irmã nos acalmamos com o jeito quieto dos homens e ajudamos, buscando bilhas com água fresca e frutas. Os homens comeram e lembro que me impressionou que muitos usavam as mãos, junto com garfos, facas e colheres. Fartaram de comer e ainda fizeram matulas para levar o que sobrou. Para terminar a tia buscou uma garrafa de pinga e ofereceu um copo para cada um dizendo: “é só para ajudar na digestão, não quero ninguém bêbado por aqui”. Os homens abençoaram várias vezes a tia, passaram a mão, gentis, na minha cabeça e se foram na noite sem levar nada que não tivesse sido oferecido. Logo o ronco do motor do caminhão que os levava se fez ouvir e eles sumiram em direção ao sul, para um destino que eu só vim a conhecer décadas mais tarde. Fomos dormir esgotados de tensão e cheios de perguntas não respondidas.
No dia seguinte a tia Jô respondeu a nossa curiosidade. Havia uma seca terrível no nordeste (mais tarde os agricultores mais velhos com quem trabalhei no nordeste se referiam a esta seca como a dos cinquentinha) e com as plantações e o gado morrendo por falta de água a população emigrava para outro lugar, em busca de trabalho e comida. Eu não entendia por que eram só homens se todo mundo passava fome. Onde estavam as mulheres e crianças? A tia explicou que os homens vinham primeiro. As perguntas se atropelavam. Por que havia seca? Por que não ajudavam estas pessoas lá onde moravam? Lembrei de pedidos de ajuda para os pobres na igreja que eu frequentava, a da Santíssima Trindade e perguntei se não tinha igreja no nordeste. Foram muitas as perguntas e não me lembro das respostas. Só lembro, e isto ficou gravado a ferro e fogo na minha memória, do choque de ver um bando de adultos com os olhos fundos, magros, cansados e comendo com ânsia tudo que colocávamos em seus pratos. A fome entrou na minha vida por esta vivência dramática que começou com pavor e terminou com imensa pena daqueles infelizes.
Muitos anos depois eu reencontrei o tema em Paris, trabalhando em uma pesquisa sobre as causas da fome no mundo. Dali para frente, nunca deixei de lidar com o assunto, quer no meu trabalho profissional de promoção do desenvolvimento agroecológico quer no campo da política. A fome como tema da política fez a sua primeira aparição na campanha iniciada no governo de Itamar Franco, quando foi criado o CONSEA, sob a presidência de D. Mauro Morelli. Depois foi a campanha de Lula com o Fome Zero de 2002 e a recriação do CONSEA no seu governo. Agora estamos de novo com uma crise alimentar ainda mais grave que a da seca dos cinquentinha e faz falta um novo e mais profundo e abrangente programa Fome Zero, depois que os governos de Temer e Bolsonaro multiplicaram os famintos por mais de 3 vezes em poucos anos. O que será que o Lula está esperando? Está na hora de lançar uma cruzada nacional pela erradicação da fome, envolvendo governos federal, estaduais e municipais, e a sociedade civil, em particular as igrejas que hoje passam mais tempo recolhendo dízimos de suas ovelhas. E os empresários, cada vez mais empedernidos na sua busca de lucros e felizes com a precarização do trabalho que lhes permite rebaixar os salários. Vamos lá Lula, ainda está em tempo de produzir um programa ambicioso. Chega de lembrar o passado. Você fez muito pelos pobres nos seus governos, mas agora é preciso mais.
P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?
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