João Rego
O saber não está simplesmente disponível. Não se pode simplesmente encontrá-lo como a informação. Não raramente, uma longa experiência o antecede. (Byung-Chul Han in No Enxame – Perspectivas do Digital)
A escrita e o saber sempre foram, historicamente, privilégio das classes dominantes. No Egito antigo apenas os sacerdotes e os escribas dominavam a escrita, que, lida em tom solene para as massas, dava sustentação simbólica ao poder. Ao longo da história, principalmente após a revolução gutenbergiana, estruturas de poder como o Estado e a Igreja, sofreram importantes impactos, como o conhecimento por meio da escrita se fragmentando, produzindo seus efeitos por toda a sociedade.
A democracia, após as duas grandes guerras do século XX, e com a derrubada do Muro de Berlim, símbolo do fim da “experiencia do Estado comunista”, se impôs para a humanidade como um valor universal. Paralelamente, em meados do século XX, a revolução tecnológica da informação dava seus primeiros passos vindo, com a internet, a perpassar todas as sociedades e culturas, transformando o homem de forma jamais imaginada.
A democracia funciona quando é capaz de absorver os conflitos em uma sociedade. Ou seja, democracia é o espaço que a civilização construiu, após grandes sacrifícios, para que os homens pudessem administrar seus naturais conflitos e interesses divergentes, sem entrar em estado de guerra.
A polarização ideológica vem num crescendo desde os anos 60, quando se percebe fenômenos como a estagnação econômica, a descrença na ciência e nas instituições, por parte dos conservadores, e a difusão da desinformação, pelos extremistas políticos, como forma de manipulação das massas.
Vivemos, hoje, a era da pós-verdade, onde os poderosos meios tecnológicos de informação possibilitam a formação de nichos de compreensão da realidade baseados mais em crenças do que nos fatos.
A humanidade vê transformado seu habitat e modo de produção, no que muitos definem como a sociedade da informação. Manuel Castells[1] propões o termo informacionalismo para substituir o capitalismo, tamanha a profundidade desta revolução sobre o homem e seus meios de produção.
O Sujeito perpassado pela informação
“Arrastamo-nos por trás da mídia digital, que, aquém da decisão consciente, transforma decisivamente nosso comportamento, nossa percepção, nossa sensação, nosso pensamento, nossa vida em sociedade. Embriagamo-nos hoje em dia de mídia digital, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual. ( Byung-Chul Han in O Enxame)
O Sujeito, perpassado pela informação, transforma-se em alvo fácil dos produtores de conteúdo e das grandes empresas globais que regem a revolução tecnológica. O capitalismo precisa rodar a sua roda do consumo, o que faz agora com sofisticados mecanismos de interpretação de grandes massas de dados e algoritmos, percorrendo os caminhos dos desejos do mercado e suas complexas variações até identificar padrões de consumo e comportamentos, base para identificado o seu perfil, produzir e fazer chegar até você a mensagem que se encaixa como uma luva nos seus desejos e inquietações.
No campo da política, arena de conquista de poder, os mecanismos são os mesmos: onde se buscava estimular o consumo, se conquista, por meio de mensagens de ódio e medo, o voto do cidadão. As sofisticadas estratégias de marketing digital, têm o poder de construir nichos ideológicos, onde o sujeito é capturado e mantido dentro de suas “câmaras de eco”, onde a controvérsia e o diálogo civilizados, com visões distintas da realidade, tão necessários a construção do conhecimento e a práxis democrática, são esmagados, ficando em seu lugar as poderosas e sutis cercas digitais do radicalismo ideológico.
Técnicas utilizadas pelo nazismo e pelo stalinismo, para citar os dois terríveis exemplos de totalitarismo do século XX, onde a mentira repetida assumia o lugar da verdade, ou quando a história era sistematicamente reescrita, atendendo as estratégias de poder, são hoje praticadas à exaustão em plena luz do dia – nas mídias sociais – forjando multidões de alienados à realidade, manipulando suas vontades e desejos, por meio da desinformação.
Enfrentamos agora uma situação em que uma grande parcela da população vive num espaço epistêmico que abandonou critérios convencionais de demonstração, consistência interna e busca de fatos […]. Uma marca registrada clara do mundo pós-moderno é que ele autoriza as pessoas a escolherem sua própria realidade, onde fatos e provas objetivas são superadas por crenças e preconceitos. (Lewandoski, Ecker e Cook in ” Misinformation:Understaing and Coping with ‘Post-truth Era”)
O resultado é que naturais conflitos ideológicos nas sociedades abertas são interrompidos na direção das suas soluções no locus democrático, sendo utilizados como mais um combustível para alimentar a fornalha cega da radicalização ideológica, elevando e fortalecendo ainda mais as cercas digitais da desinformação, do ódio e do preconceito.
Os setores dos extremos ideológicos têm aversão à diversidade, à empatia e à tolerância como forma de convivência humana. São, em essência, antidemocráticos. É este um dos principais desafios da sociedade da informação, e para o futuro da Democracia.
A Linha de Ação Informação e Sociedade no Século XXI se propõe a investigar os fenômenos sociais, tecnológicos e psicológicos que estão por trás dessa mudança de prática política que ameaça o futuro da democracia, propondo soluções e estimulando o debate científico sobre o tema.
[1] Castells