É bastante claro que a instalação de uma Convenção Constitucional, autônoma, paritária, externa oficialmente aos partidos políticos e com uma maioria de independentes, derivou do chamado “estallido social” de outubro de 2019, isto é, das manifestações de massa, em muitos casos sintomaticamente violentas, que foram qualificadas como “rebelião” ou “revolta popular”. O mesmo pode-se dizer em relação à vitória de Gabriel Boric, jovem político de esquerda radical, que rapidamente assumiria um perfil mais conciliador a partir da sua ascensão à presidência, em março de 2022.
São momentos importantes de um processo político de caráter ascendente que deixou para trás, até o momento, a tradicional capacidade de veto que a direita chilena impôs ao país desde a redemocratização, um posicionamento que criou enormes obstáculos para se realizar reformas na Constituição de 1980 prescrita por Augusto Pinochet. Mesmo assim, desde 2005, a Constituição pinochetista sofreu reformas importantes que aprofundaram o curso da transição à democracia e garantiram um perfil reformador, do ponto de vista social, aos governos da chamada Concertación entre 1990 a 2010 ou mesmo depois.
A caracterização definitiva do que foi o “estallido” de 2019 ainda está por ser feita. É certo que foi uma explosão de ira e violência sem precedentes desde que se havia superado a ditadura no final da década de 1980 e início da seguinte. Não é simples compreender e explicar o que ocorreu naquele “longo outubro chileno” – em algumas localidades as manifestações foram até o final do ano. A demanda por uma “nova ordem política” ficou suficientemente clara e o sistema político assim a entendeu. O acordo de 15 de novembro de 2019 definiu os termos do plebiscito convocatório para uma Convenção Constitucional, que por fim seria eleita em 16 de maio de 2021, por conta da pandemia de Covid19, bem como o escopo daquela assembleia.
Pela dimensão e pelo caráter disrruptivo do “estallido social”, ficou claro que não se colocava em questão apenas o governo de turno, presidido por Sebastian Piñera, nem tampouco “os 30 anos da Concertación” – uma impropriedade cronológica. O grau de violência, intensidade, amplitude, resiliência e radicalidade das manifestações indicavam algo bem maior. Foi de uma explosão sincronizada e sem lideranças explícitas que, na sugestiva observação do historiador Alfredo Riquelme, acabou por estabelecer uma equivalência simbólica com outro momento disrruptivo da história política chilena, isto é, o golpe militar de 1973 que derrubou Salvador Allende e o governo da Unidade Popular. A clivagem que o “estallido” de 2019 estabeleceu parece demarcar também sua diferenciação (e aparente antagonismo) com a transição pactada que se iniciou com o plebiscito de 1988 e se desdobrou nos governos da Concertación. Visto assim, o “estallido” ganharia a imagem de uma catarse a expressar um desejo de refundação conformado em um ato simbolicamente similar àquele que os militares de Pinochet estabeleceram em 1973. Não há similitude de personagens ou quanto ao decurso de ações, mas há uma equivalência simbólica que parece dirigir os termos do embate político que agora se trava a respeito do novo texto constitucional.
A eleição dos constituintes, os conteúdos do novo texto constitucional (a exemplo: uma ampliação inusitada dos direitos, o fim do Senado e do Poder Judiciário, o reconhecimento da plurinacionalidade, um feminismo radical, etc.), além da polarização que se forma no atual debate político têm, portanto, uma lógica que, em termos gerais, se pode compreender, em meio ao turbilhão dos acontecimentos. O vínculo entre o “estallido”, a Convenção Constitucional, a eleição e assunção de Gabriel Boric ao poder estão intimamente conectados, embora cada uma dessas dimensões ocupe um lugar e um papel institucional específico que precisa ser resguardado em sua legitimidade e soberania.
Não há como não reconhecer que do novo texto constitucional elaborado pela Convenção emana o desejo de refundar o país. Junto com o “estallido” são as duas faces daquilo que vem sendo chamado de espírito partisano ou outubrismo. Daí tem emergido uma vontade incisiva e permanente de promoção do antagonismo político que parece ser impossível de se ultrapassar. O que faz com que o governo Boric tenha que navegar por todo tempo em águas convulsas tanto por conta do debate em torno da nova Constituição – que terá o seu desenlace no plebiscito de 4 de setembro – como da crise de dimensões globais provocada pela pandemia e pela guerra da Rússia na Ucrânia.
O “plebiscito de saída” – como dizem os chilenos – coloca ao novo texto constitucional uma disjuntiva inescapável: “apruebo” ou “rechazo”. Pelo clima geral que se instalou talvez seja um exagero dizer que a primeira opção representa a esquerda e a segunda a direita. Uma média das pesquisas, até o momento, indica que a opção pelo rechaço parte de uma base de 44%, índice similar à votação da direita tanto no plebiscito de 1988 quanto na derrota de José Antonio Kast para Gabriel Boric na última eleição presidencial. Mas não se pode deixar de anotar que muitos personagens de esquerda, por diversas razões, têm se manifestado a favor do rechaço. Por outro lado, há alguns dias a maioria da direção nacional da Democracia Cristã (que muitos alocam equivocadamente à “direita”) definiu-se pelo “apruebo”, mesmo que alguns dos seus mais ilustres próceres se mantenham em posição oposta.
Nesse contexto bastante complicado, o ex-presidente da República, Ricardo Lagos, expressão consagrada da centro-esquerda e uma autoridade política bastante legitimada no país, propôs uma alternativa intermediária: rediscutir, após o plebiscito, os pontos centrais que dividem os chilenos, independente de qual seja a opção vencedora. A recusa de Lagos em se definir por um dos lados ajuda a distensionar o ambiente, mas joga a resolução da crise para depois do plebiscito, afastando, de certa forma, a cidadania da sua resolução definitiva que é, objetivamente, o estabelecimento de uma nova ordem política. Há, contudo, outros problemas. Caso ganhe o rechaço, não há garantia nenhuma de que a direita chilena, com maioria e poder de veto no atual Congresso, estaria disposta a negociar um novo percurso de resolução da crise. Uma situação como essa aumentaria a polarização e teria um forte potencial desestabilizador para o governo Boric. Por outro lado, a abertura para que se discuta os temas polêmicos do novo texto, ou seja, aqueles que derivam do chamado outubrismo, também não estaria garantida caso vença a opção “apruebo”.
É preciso lembrar que o acordo de 15 de novembro de 2019 foi feito com a cláusula de obrigatoriedade do voto no “plebiscito de saída” visando garantir plena soberania da cidadania na conclusão da grande crise. Ocorre que a opção pelo rechaço não conclui a crise, apenas a suspende. E, por outro lado, a opção pela aprovação está longe de ser consensual, desdobrando e precificando claramente uma nova ordem de conflitos, que pode colocar novos problemas para o governo Boric. O sociólogo Manuel Antonio Garretón, numa entrevista à TV chilena, entende que “a única opção que faria avançar o processo político seria aprovar o novo texto constitucional”. A partir do seu ponto de vista, caso vença o “rechazo”, a única alternativa democrática seria convocar novamente a cidadania para eleger outra Convenção, com a mesma tarefa, isto é, elaborar um novo texto constitucional.
Nessa reflexão, o caráter refundacional preside todo o argumento. Nela, o acordo de 15 de novembro de 2019 seria a única fonte de legitimidade política. Obviamente, esta é uma lógica questionável uma vez que a Constituição de 1980 ainda está em vigência. O problema está no entendimento do “plebiscito de saída” como o ato de conclusão do processo político que emergiu com o “estallido”. Com uma vitória do “apruebo”, o ciclo político seria concluído afirmativamente; com a vitória do “rechazo” o ciclo se fecharia de forma negativa, bloqueando ou paralisando o ascendente processo político em curso. O que demandaria, numa chave de leitura otimista, a busca de outras alternativas para o estabelecimento de uma via de continuidade da democratização do país.
Pode-se anotar apenas duas certezas: a primeira é que, até setembro, teremos pela frente dias agitados e tensos de debate político, envolvendo o conjunto da cidadania de um país cuja relação histórica com a política não esvaneceu depois de anos de ditadura. A segunda é que o Chile que voltou a pulsar violentamente em outubro de 2019 tem pela frente ainda uma História em aberto
P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?
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