Helga Hoffmann

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Mais um mês de escalada da violência. Em julho, analistas políticos ainda diziam que o governo Maduro caminhava para a ditadura. Em agosto, caminho trilhado, é uma ditadura sem disfarces. Já não sobra nada do que pode definir uma democracia: a Constituição já não guia as ações de governo e a independência dos poderes já não existe desde que o Presidente dá ordens ao Tribunal Superior de Justiça, a corte suprema, para onde nomeou juízes do seu partido. E esta semana dissolveu a Assembleia Nacional e retirou dela os poderes que a Constituição assegurava.

Os direitos civis dos cidadãos e a liberdade já vêm sendo feridos faz tempo, como se vê no relato dos milhares de refugiados e exilados no Brasil, na Colômbia, na Espanha, nos Estados Unidos, no horror da violência flagrada por vídeos que a imprensa internacional divulga e circulam pela internet, na quantidade de opositores políticos processados sumariamente e presos, nas dezenas de manifestantes assassinados. Sem falar nas medidas que trouxeram a escassez extrema de alimentos e de todos os itens básicos, que exigem uma análise à parte.

Já em novembro de 2015 o Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein, apelou para que as autoridades venezuelanas “protegessem adequadamente os opositores políticos”. Desde então só houve piora. A entrada de funcionários da ONU para averiguações in loco foi rejeitada. Além de prisões arbitrárias, há notícias sobre uso de tortura. Informação oficial sobre as prisões arbitrárias e as mortes de manifestantes não há, só se sabe o que jornalistas e vizinhos conseguem divulgar. Os jornais estão trocando regularmente seus correspondentes, pois estes, uma vez reconhecidos pelos militantes da Guarda Nacional Bolivariana (GNB) ou sob suspeita do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (SEBIN), podem ter seus celulares tomados e correm perigo.

Na véspera da instalação da nova Constituinte em 2 de agosto de 2017, o Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos pediu “a libertação imediata de todos os detidos por exercer seu direito de liberdade de reunião pacífica, associação e expressão”. Considerou arbitrária a prisão de Leopoldo Lopez e Antonio Ledezma, lamentou que ao menos 10 pessoas morreram no fim de semana de protesto contra a Constituinte e pediu uma investigação independente dessas mortes.

A Venezuela é mais um exemplo de regime que pretexta legitimidade de uma eleição para transformar-se em ditadura, em que a Presidência abusa rotineiramente dos limites constitucionais ao seu poder, até chegar ao uso da violência escancarada contra opositores ou meros críticos.[2] Sim, Nicolas Maduro ganhou as eleições de abril de 2013 (logo após a morte de Chavez), para um mandato constitucional de 6 anos. Compareceram mais de 15 milhões de eleitores, e a margem foi apertada, 50,61% para Maduro contra 49,12% dados a Henrique Capriles, do MUD. Desde então o caudilho chavista vem perdendo eleitores, e na eleição parlamentar de dezembro de 2015, à qual compareceram quase 14 milhões de eleitores, a oposição obteve sólida maioria.  Desde 2016 a oposição tem maioria de 2/3 na Assembleia Nacional, que pela Constituição chavista de 2000, em tese ainda vigente, tem o poder de censurar ministros, emendar a Constituição e impedir o Presidente por falta grave. Em janeiro deste ano a Assembleia Nacional chegou a votar o afastamento do Presidente e a realização de novas eleições, argumentando inclusive com o descalabro do abastecimento, mas o STJ não reconheceu essa decisão. E desde então o Presidente Maduro não tem feito outra coisa que buscar novas formas de suprimir a oposição, pois era certo que esta se fortaleceria ainda mais nas eleições que eram previstas para 2018/2019.

A eleição artificial de uma Assembleia Constituinte foi a fórmula imaginada para destituir uma Assembleia Nacional legitimamente eleita controlada pela oposição. E tal manobra estava clara muito antes da sua convocação para 30 de julho de 2017. As novas regras para a formação do respectivo colégio eleitoral já mostravam o rumo para um regime novo, uma ditadura da minoria. Já não valia um voto por pessoa, pois os candidatos foram apontados por um complicado sistema de representação por distritos independente do número de habitantes e por associações de diferentes categorias. Se ditadura da maioria não é democracia, o que dizer da ditadura de uma minoria?

Paradoxalmente, é a Procuradora Geral da Venezuela (para os venezuelanos a “Fiscal General de la Republica”), Luisa Ortega, que se transformou em um símbolo de defesa da Constituição. Brandindo o livrinho azul da Constituição da República Bolivariana (que foi aprovada em 1999 durante o governo Chavez) manifestou-se contra a dissolução da Assembleia Nacional democraticamente eleita e a nova Constituinte de votação artificial. O Presidente Maduro passou a considerá-la traidora e impediu que ela entrasse na Fiscalia, cassou seu passaporte e bloqueou sua conta bancária.

Na mesma linha de argumentação de Luisa Ortega, o Presidente da Assembleia Nacional, Julio Borges, afirmou que a Constituinte montada por Maduro é um “rapto constitucional” e que pelo artigo 279 da Constituição, como é a Assembleia Nacional que pode constitucionalmente demitir a Procuradora, Luisa Ortega legalmente continua em seu cargo, ainda que já demitida pela Constituinte em sua primeira sessão. Indícios de fraude nos votos da Constituinte vão desde afirmações dos fornecedores das máquinas de votar a vazamento de afirmação de autoridade eleitoral de que pouco antes do fechamento dos locais de votação apenas pouco mais de 3 milhões de eleitores haviam comparecido. Por comparação, 7 milhões compareceram ao referendo informal da oposição contra a eleição de uma Constituinte.

Enquanto ocorriam no país imensas manifestações contra Maduro e a proposta da Constituinte, houve tentativas internacionais de encaminhar alguma conciliação mútua para evitar a escalada da violência. Tentativas de negociação entre Maduro e a oposição, mesmo com intermediação do Papa Francisco, da UNASUR, do ex-presidente espanhol Rodriguez Zapatero e outros, não progrediram. Em Caracas, embaixadores de vários países, inclusive Grã-Bretanha, Espanha, França e México, compareceram à sessão da Assembleia Nacional antes de sua dissolução, em apoio simbólico contra a Constituinte.

Na América Latina, uma posição unânime contra a violação das regras democráticas tem sido dificultada por países cujos governos ou têm a afinidade ideológica do baixo apreço à democracia ou têm dívidas de gratidão por apoio material e ajuda da Venezuela que fornecia petróleo subsidiado a pequenos países importadores já na crise do petróleo dos 1980s e ainda na época em que o barril do petróleo passou de US$100, pouco antes da Grande Recessão de 2008-2009. Pequenos países caribenhos bloquearam mais cedo uma declaração da Organização dos Estados Americanos (OEA) contra medidas autoritárias. Mas Luis Almagro, o uruguaio que é desde 2015 o secretário geral da OEA, chamou a eleição da Constituinte de “a maior fraude eleitoral” da história da América Latina.

Entre os caribenhos, Cuba é caso à parte, sendo a ilha sócia do êxito ou do fracasso de Maduro, cujas forças de segurança assessora tecnicamente além de fornecer efetivos para a Guarda Nacional e a SEBIN. Foi possível vencer dúvidas do Uruguai no MERCOSUL, e na reunião de 5 de agosto em São Paulo os chanceleres do bloco por unanimidade suspenderam a Venezuela pela “ruptura da ordem democrática”. Pelo visto as dúvidas do Uruguai voltaram três dias depois no Peru, onde ministros das relações exteriores membros da OEA lançaram a “Declaração de Lima”: 12 países condenam, mais uma vez, a “ruptura da ordem democrática” e se recusam a reconhecer a legitimidade da Constituinte (Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México e Panamá). Mais 5 ministros estavam presentes e participaram das 7 horas de discussão, mas se abstiveram (Bolívia, El Salvador, Equador, Nicarágua e Uruguai).

As sanções possivelmente mais eficazes, dadas as circunstâncias, são as dos Estados Unidos, onde o Secretário do Tesouro, usando o termo “ditadura”, anunciou congelamento de ativos do Presidente Maduro nos Estados Unidos e proibiu sua entrada no país, como já havia sido feito em relação a outros altos funcionários chavistas. Sanções comerciais não afetam as autoridades governamentais venezuelanas, que detêm o acesso ao câmbio pelo controle da PDVSA, a estatal do petróleo, e o monopólio da importação e distribuição de alimentos, produtos farmacêuticos, e outros, praticamente entregue ao exército.

Se ainda existe alguém com a ilusão de que a análise da política econômica pode ser feita de maneira tecnocrática, para concluir o que é melhor para a nação e o conjunto da população, na Venezuela arrisca ser processado e preso. Maduro promete que os novos superpoderes vão permitir que ele crie uma “nova economia menos dependente do petróleo”. Pois, segundo ele, as dificuldades econômicas de seu país se devem à queda do preço do petróleo e à “guerra econômica” contra a Venezuela. Não adiante notar que muitos dos países exportadores de petróleo tiveram crescimento do PIB depois de 2012, nem pedir os fatos e atos dessa tal “guerra econômica”.

Ricardo Hausmann, economista venezuelano dos mais conhecidos internacionalmente, ex-economista chefe do BID e hoje diretor do Centro para Desenvolvimento Internacional da Universidade de Harvard, afirma que o colapso econômico da Venezuela não tem precedentes: o PIB per capita caiu 40% desde 2012, mas outro determinante das possibilidades de consumo da população no caso da Venezuela, as importações,  caíram espantosos 75% entre 2012 e 2016 e continuam caindo. Examinaremos em artigo separado, para a próxima edição da “Será?”, como tem funcionado a economia da Venezuela e como essa situação pode continuar. Por ora, anote-se que Maduro chamou Ricardo Hausmann de “principal operador do bloqueio e da perseguição financeira contra a Venezuela” e acrescentou: “é preciso processá-lo”. Isso porque ele afirma que o colapso se deve à política econômica dos governos chavistas. A ditadura venezuelana quer impedir também a análise econômica.

[1] O artigo postado na “Será?” em 30 de junho pp. “Venezuela: o estatismo em um estado falido”, terminou alarmado: “A violência vai aumentar. O que pode fazer a comunidade internacional para interromper a tragédia?”

 

[2] Examinamos na “Será?” de 21/07/2017 o caso da Turquia, onde votações também foram usadas para formar gradualmente um governo despótico: “Turquia: vitória democrática é pretexto para ditadura”.

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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