No regaço da amizade, que nos une a todos, vivemos o ordo amoris. Amor às coisas, amor das coisas. Amor e mundo. Duas mãos e sentimento do mundo. Amar as coisas fomentando o fazer civil, ordinário. Cumprindo o rito. Transcendendo o rio.

Domingo. A eleição mergulhou num profundo céu azul. Tropical. Tomei o carro com minha mulher. E fomos votar. A antiga e esperada cena. Gente e alegria. Conhecidos que se reencontram. Clima de quase confraternização. Perfeita moldura de paz. Septuagenário, sou recebido na preferencial. Rapidamente, digito os cinco números. Deixo a seção eleitoral convicto. A pressa importa menos. Importa mais a democracia. Em pé. Soberana. Pacificada. E o povo invicto. Expresso na vontade cabal. Impresso no meio digital. Essa foi meu conforto primeiro: a paz. Uma paz sem excitação. Digna. Paz de meu país eleitoral.

Meu segundo conforto foi à noite. Em casa. Lendo para distrair a expectativa da apuração. Ao assistir na tv, no meio da noite, os números praticamente encerrados. Tudo em segurança eletrônica. Sem fraude. Sem empurrões de cabos eleitorais. Sem alteração de boletins. Tudo limpo. Acompanhado por observadores internacionais. Na prática, o maior show eletrônico de coleta e processamento de votos do planeta.

Por trás da cena, um agente oculto, transcendente: a Justiça Eleitoral. A institucionalidade. A mediadora de interesses. A coordenadora de esforços. O Tribunal Superior Eleitoral – TSE é uma orquestra. Tem suas, seus metais. E, quando necessário, sua percussão. Repercutindo. No conjunto, a melodia harmoniosa de uma ópera de Carlos Gomes. Tão brasileira.

No final, os números de Lula foram os das pesquisas. E os de Bolsonaro superiores aos das pesquisas. Surge o voto envergonhado? Há uma concentração de votação em estados mais ricos. São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais. E começam a pipocar frases de preconceito contra o Nordeste. Uma delas diz: Nordeste, a Cuba do Sul. No comments. O preconceito contra nordestinos é costume antigo. Desconhece a história do Brasil. O Brasil que foi construído de dentro para fora. A partir do açúcar nordestino. Cuja receita, transformada em recursos fiscais, iluminou o Paço Imperial. E ruas cariocas, no século 19. E cujos saldos cambiais facilitaram a importação de máquinas e equipamentos para industrializar os distritos industriais paulistas.

Vale aplicar corte sociológico no cenário. É nesses três estados do Sudeste que se concentra o maior volume de população de renda mais elevada. A classe média alta. Então, há correlação entre classe média alta e voto bolsonarista. Se assim for, o perfil do voto sudestino e bolsonarista não se preocupa com o discurso que destrói floresta, que prega o uso de arma, que se associa ao autoritarismo de extrema direita. E não está preocupado com políticas de redistribuição de renda, de fortalecimento do SUS, de adoção de orçamento secreto e de preservação de garantias democráticas.

Do mesmo modo que o Nordeste não é a Cuba do Sul, o Sudeste não será a Coreia do Norte. Esta eleição não representa apenas a continuidade de governo de extrema direita. Baseado em populismo autocrático de feição fundamentalista. Trata-se de prosseguir projeto antibrasileiro. Para eliminar a liberdade democrática baseada no equilíbrio entre Poderes.

Eleitores do Sudeste, que não querem perder privilégios, podem perder a liberdade. Porque governos, sustentados no voluntarismo do príncipe, não poupam endereços. Quando muda o humor. O caminho não é Bolsonaro. O caminho é uma frente democrática. Incorporando a diversidade social e étnica desta nação de índios, brancos e negros. Transparente. Sem sigilos de cem anos. Com o espírito aberto de paulistas, como José Bonifácio. E pernambucanos, como Joaquim Nabuco.

Assentado em modelo sério de governança e três prioridades: qualidade na educação, restauração da integralidade de recursos para o SUS e a volta da visão de longo prazo, no conceito francês de planejamento indicativo. Quase me assalta pesadelo. Em que estrangeiros trariam ideias estranhas ao ambiente amenamente fraterno desta Florença tropical. Como disse Albert Camus.

Repito palavras que escrevi ano passado: Juntos, sem medo de pensar. Solidários, nesse tempo de ameaça. Olhar, vendo por fora e por dentro. Do fundo do poço, aliamo-nos aos bons sentimentos. Voando a bordo do improvável. Compartilhando afetos, amorosidade, mergulhados no ethos da paixão.

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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