Helga Hoffmann

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“Estamos, devagar e com cuidado, trazendo nossos valorosos soldados & militares de volta para casa”, tuitou Donald Trump, o Presidente dos Estados Unidos, sobre sua decisão de retirar as tropas americanas da Síria no início de outubro. Trump está em campanha por sua reeleição ano que vem e “Bringing soldiers home!”, como tuitou de novo no domingo passado, parece popular. Talvez não seja tão popular quanto era nos anos setenta, depois que o jornal mais respeitável dos Estados Unidos, The New York Times, vazou parte dos “Pentagon Papers”, a investigação secreta sobre a ação americana na guerra do Vietnam. Mas, de novo, há um debate sobre a presença de tropas americanas no exterior e pesquisas de opinião entre veteranos mostraram que a maioria deles considera que a intervenção militar dos Estados Unidos no Iraque, no Afeganistão e na Síria não valeu a pena.[1]

Agora, imediatamente depois da partida dos americanos que ainda estavam no norte da Síria, começaram as denúncias sobre como a retirada de tropas americanas punha em perigo outras prioridades da política externa americana. As condenações, partindo de grupos de todo o espectro político nos Estados Unidos, multiplicam-se com o desenrolar dos acontecimentos. Entre as primeiras críticas, vindas inclusive de membros do Partido Republicano, esteve a de traição aos curdos, ampliando a mensagem de que não se deve confiar nos Estados Unidos nem como aliado nem como adversário.

Condenou-se também o apoio implícito à intervenção militar da Turquia na Síria, que recebeu luz verde com um só telefonema do Presidente americano Donald Trump ao Presidente turco Recep Tayyip Erdogan. Mostrou-se como o abandono das YPG, as milícias curdas que ajudaram os americanos a derrotar o califado do Estado Islâmico (ISIS) no Iraque e na Síria, permitiria o ressurgimento do terrorismo do Estado Islâmico. Militantes do ISIS estavam escapando das prisões dos curdos em fuga, sob ataque de soldados de Ancara ao norte e de Damasco ao sul.

Além do temor de uma volta do controle do ISIS em alguns pontos, há a preocupação com uma nova crise humanitária, pois entre 150 e 300 mil pessoas ficaram sem teto fugindo dos bombardeios turcos, vítimas do plano mirabolante de Erdogan de abrir espaço na Síria para relocar na faixa fronteiriça, em suposta “zona segura”, dois milhões de refugiados que ele quer devolver à Síria.

E analistas militares experientes, que participaram como funcionários do Pentágono nas negociações com Putin para o cessar-fogo na Síria em 2016, denunciaram a mentira da retirada das tropas americanas, de fato enviadas para outras áreas, com aumento da presença na Arábia Saudita e no Iraque, enquanto o abandono dos antigos parceiros curdos significava na prática a ressurreição do ISIS.[2]

O resultado imediato da retirada das tropas americanas, os mil militares que ainda permaneciam na Síria, foi o abandono à sua própria sorte de seus antigos aliados curdos das Forças Democráticas Sírias (SDF na sigla inglesa), cuja força efetiva vem das milícias curdas chamadas Unidades de Proteção do Povo (YPG). SDF recebeu apoio de militares das forças especiais dos Estados Unidos e dos bombardeios americanos na luta contra os redutos do ISIS, mas foram os curdos os principais combatentes em terra. Milhares de curdos morreram lutando do lado dos americanos contra o ISIS na Síria. Comentou-se na mídia norte-americana como os americanos, ao chegarem ao norte da Síria, haviam sido recebidos como heróis pelos curdos, com flores e vivas, e agora, na retirada, os curdos aterrorizados jogavam contra eles tomates e pedras.[3] Trump, criticado pela decisão abrupta, negou o telefonema, declarou Erdogan “diabo” se continuasse sua ofensiva na Síria, e alegou que não devia lealdade aos curdos, “pois eles não nos ajudaram na II Guerra” (sic). O que é mentira, mais uma, ou desconhecimento de história.

De qualquer modo, para quem recordasse a insistência de Erdogan em apontar a presença de YPG perto da fronteira como uma ameaça à segurança turca por suas ligações com o PKK, a organização dos curdos na Turquia, impossível achar que Erdogan não aproveitasse a oportunidade. Ainda mais neste momento da sua popularidade em declínio.

Este ano, com a economia em crise, desemprego em ascensão, escalada do autoritarismo, prisão de jornalistas, dissidências no grupo do poder, e ressentimento difuso que começava a voltar-se também contra os 3,6 milhões de refugiados sírios (quase 4% da população), o partido de Erdogan havia perdido eleições em várias cidades importantes, inclusive Istambul.[4] Trump deu de presente ao partido AKP e ao autocrático presidente da Turquia a chance de uma nova arregimentação do nacionalismo turco em torno dele.[5] E enquanto tropas turcas invadiam a Síria contra militantes curdos, as autoridades de Ancara prenderam três prefeitos eleitos, que teriam criticado a invasão. Além deles, como relatou Ayla Jean Yackley do Financial Times em Istambul (20/10/2019), foram presas mais de 100 pessoas em conexão com postagens na mídia social críticas à invasão e ao sofrimento imposto à população civil na Síria. A Turquia, com uma população de 82 milhões, surpreende com 53 milhões de usuários de mídia social.[6]

Trump, fiel a seu estilo, depois de haver encorajado a ofensiva turca no norte da Síria, impôs sanções à Turquia e ameaçou “totalmente destruir e obliterar” sua economia se Erdogan não desistisse da operação na fronteira. Também a União Europeia condenou a ofensiva turca por “prejudicar seriamente a estabilidade e a segurança em toda a região”, e seus membros se comprometeram a restringir a venda de armas à Turquia, ainda que não chegassem a um embargo total. Para os europeus sempre foi difícil aceitar o argumento turco de que a presença de YPG na fronteira constituía uma ameaça à segurança da Turquia por causa das ligações entre curdos na Síria e na Turquia.

É muito antiga a divergência entre Erdogan e seus parceiros ocidentais na OTAN em relação aos curdos. Precede a própria entrada da Turquia na OTAN em 1952. Durante a Guerra Fria, quando a OTAN declarou a União Soviética “ameaça comum”, a Turquia ajudou a neutralizar a ameaça comunista, ao menos até que surgiram as diferenças sobre Chipre, e depois sobre o PKK. Os aliados ocidentais nunca incluíram o PKK entre as organizações terroristas, como pretendia a Turquia, e esta sempre suspeitou de uma ajuda dos aliados ocidentais ao PKK.

Depois do Onze de Setembro a cooperação da Turquia na luta contra o terrorismo foi importante, sobretudo no controle das fronteiras contra o trânsito de combatentes terroristas estrangeiros e na criação de uma estrutura legal internacional contra o terrorismo e a lavagem de dinheiro, além da troca de informação. Sempre houve alguma diferença na sincronização do combate ao ISIS, que pode ser simbolizada na definição do que seja “terrorismo islâmico”, a expressão usada pelos aliados ocidentais, enquanto a Turquia prefere definir terrorismo sem referência ao Islam.

Com a guerra civil na Síria, que já vai para oito anos, a cooperação da Turquia no combate ao terrorismo complicou-se, pois teve que reforçar medidas de segurança físicas ao longo dos 911 quilômetros de sua fronteira com a Síria, construindo postos de fronteira, organizados sob um comando central a partir de 2014, além da formação de brigadas especiais de fronteira. Mesmo na hipótese de que os Estados Unidos consideraram que estava vencida a guerra contra o terrorismo do Estado Islâmico, é difícil explicar a guinada de Trump, que levou a um reforço da Rússia e do Irã na Síria, assim como do ditador Bashar al-Assad, além de outras repercussões no Oriente Médio.

Mostrando os efeitos da frivolidade irresponsável das falas de Trump na política externa dos EUA o colunista Roger Cohen, no The New York Times, lamenta que os conflitos violentos estão sendo agravados em várias partes do mundo: “A palavra dos americanos hoje vale menos do que em qualquer momento desde 1945. Credibilidade não é uma mercadoria que se recupera facilmente. Acordos solenes assinados pelos Estados Unidos, como o acordo nuclear do Irã, são rasgados – e substituídos por ameaças vazias.”[7]

De fato, já perdida a capacidade de conter danos, o governo americano enviou a Ancara o vice-presidente Mike Pence para negociar um cessar fogo de cinco dias para permitir a retirada das forças curdas, que expirou 22 de outubro. Turcos e curdos reivindicaram vitória. Mas, nesse dia, Erdogan se reuniu em Sochi com Putin, confirmando que é a Rússia o ator crucial na Síria. Para os curdos trata-se da sobrevivência, e assim as Forças Democráticas Sírias em pânico se alinharam com Bashar al-Assad e Vladimir Putin. Para milhões de refugiados sírios sobrou o medo da deportação, o medo de serem obrigados a voltar para uma parte da Síria que nem conhecem, que não sabem se é zona segura, e em que, longe de seus locais de origem, estarão como estrangeiros em sua própria nação.

O balanço das manifestações vindas de todas as partes depois da invasão da Síria pela Turquia já não permite afirmar com certeza que “Bringing soldiers home” é, assim simples e sem qualificações, uma bandeira popular. Já há quem esteja insinuando que houve um erro no slogan de Trump “Make America Great Again”, era preciso ter lido “Make Russia Great Again”.[8]

 

 

[1] Hannah Arendt: “Reflections on the Pentagon Papers”, The New York Review of Books, 18 de novembro de 1971. O impacto da guerra do Vietnam levou Arendt a observar, no fim desse texto: “Basta conversar com alguns dos veteranos desta guerra… para perceber que para este país levar ao sucesso políticas aventureiras e agressivas seria necessária uma mudança drástica no ‘caráter nacional’ do povo americano.” Paradoxalmente esquecia que todo o seu texto mostrava o quanto a opinião pública pode ser manipulada, tanto pelas piores quanto pelas melhores intenções. Verdade que ela mostra que, no fim das contas, os fatos vencem as teorias.

[2] Brian Katz e Michael Carpenter, “ISIS is already rising from the ashes: Turkey’s invasion of Syria will fuel a Jihadi resurgence”, Foreign Affairs, 16/10/2019.

[3] Washington Post, acessado em 21/10/2019.

[4] Analisamos as eleições em Istambul na “Será?” em 28/06/2019: “Turquia: e Istambul deu o troco a Erdogan…”.

[5] Kaya Gene, “Erdogan’s Way: The Rise and Rule of Tukey’s Islamist Shapeshifter, Foreign Affairs, September/Octotber 2019

[6] Cf. Kaya Gene, ibidem.

[7] https://www.nytimes.com/2019/10/18/opinion/trump-kurds-syria.html?mc

[8] “Sem saber, ou sabendo, o presidente americano se fez o agente do Kremlin, que embolsa com um sorriso aberto o pé-de-meia oferecido pela Casa Branca.” (“Sans le savoir, ou en le sachant, le président américain s’est fait l’agent du Kremlin, qui empoche avec un large sourire le magot offert par la Maison Blanche.”) Laurent Joffrin, “Vladimir Trump”, Libération, Paris 24/10/2019

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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