Helga Hoffmann
As contas nacionais da Venezuela estão suspensas desde 2015, pois o governo do Presidente Nicolas Maduro considerou que estavam sendo politizadas. E assim não temos números oficiais sobre como está a produção, o consumo e o investimento, nem sobre receita e despesa do governo, ou o valor do que o país exporta ou importa, não há PIB (Produto Interno Bruto) nem PNB (Produto Nacional Bruto), não há índice de inflação ou informação sobre o total da dívida pública interna e externa. O governo Maduro informou que queria evitar a “politização” das informações. E assim não se pode ter sequer alguma discussão técnica sobre porque, no caso da Venezuela, o PNB vem caindo ultimamente mais rápido que o PIB.[1]
Com a falta de transparência, a desconfiança sobre o estado da economia venezuelana só fez aumentar, mais ainda nos últimos dois anos. Por que será que hoje em dia há quase meio milhão de venezuelanos vivendo ou sobrevivendo na Colômbia, dos quais apenas 50 mil têm visto de residência regular?[2] Por que a avalanche de refugiados e emigrantes venezuelanos que preocupa Brasil, Espanha, e Estados Unidos inclui tantos refugiados econômicos, que, ao menos no Brasil e na Colômbia, relatam pessoalmente a falta de comida, as prateleiras vazias dos mercados, as longas filas para os itens mais básicos que se esgotam antes do fim da fila? A falta de dados oficiais não impede que saibamos que há hiperinflação no país, com taxa anual de 720% (segundo o FMI, ainda que algumas estimativas de consultorias sejam bem mais altas) e que os aumentos de salários nem de longe conseguem acompanhar aumentos de preços dessa ordem e assim não compram sequer alimentação.
O governo chavista explica a crise econômica pela queda do preço do petróleo e por uma “guerra econômica” e “perseguição financeira” que estaria sendo travada contra a Venezuela, ninguém explica se pelos oposicionistas, pelo imperialismo, pelos neoliberais, pelo capitalismo financeiro internacional, pela “direita fascista contrarevolucionária”. Fato é que a crise de abastecimento não pode ser entendida apenas porque caíram as receitas de exportação de um país que depende tão dramaticamente de importações. É simplista acusar a “maldição do petróleo”.
Ela é o resultado de várias medidas do governo, entre elas a política cambial, em que o acesso à moeda estrangeira é monopolizado por autoridades governamentais. Do lado das exportações, o governo detém o controle da estatal Petroleos de Venezuela S.A. (PDVSA) e o seu uso para políticas públicas que prejudicaram seus investimentos e o seu funcionamento como empresa, provocando gradual queda do seu volume de produção, independentemente dos preços no mercado internacional. O uso insustentável das receitas da PDVSA vem desde o tempo da crise do petróleo dos 1980s. No mercado interno o petróleo continua subsidiado até hoje. Desde 2002, quando o Presidente Chavez em retaliação política demitiu cerca de 18.000 funcionários da PDVSA, há também uma deficiência tecnológica, agravada pela prioridade em manter o controle dos campos de petróleo, a falta de investimento, e dívidas elevadas que a impedem de importar certos produtos necessários para as operações, inclusive a substituição de velhos navios petroleiros. A má gestão é tamanha que a produção petroleira da Venezuela, hoje, é 20% menor do que era em 2012, ainda que a Venezuela tenha a maior reserva de petróleo do mundo. PDVSA é responsável por 90% do total da receita de exportações e 50% da receita do governo.
A produção caiu em muitos outros setores, desde aço e cimento, até a agricultura. Segundo o conceituado economista Ricardo Hausmann, a produção agrícola venezuelana caiu 33% no período 2007-2015. Com as expropriações de terras e de empresas que prestavam serviços ao setor agrícola não há sementes, fertilizantes, tratores. Continuou caindo em 2016 e 2017.[3] Com o aumento das incertezas relativas à expropriação de ativos, o investimento estrangeiro na Venezuela parou em 2017. Ainda segundo as estimativas de Hausmann, com uma perda no PIB per capita estimada em 50%, o sofrimento econômico da população venezuelana só é comparável ao que tiveram os cubanos no chamado “período especial”, o quinquênio 1989-93, depois que a Rússia parou de subsidiar o açúcar exportado por Cuba. E nem lembremos o turismo.
Também as importações são controladas pelo governo, que licencia o câmbio e estabelece diferentes taxas de câmbio em um complicado sistema com que pretende evitar fuga de capitais. Para importações de alimentos e medicina vale a chamada taxa DIPRO, de 10 bolívares. Para outros fins especificados vale a taxa DICOM, obtida através de leilões de lotes realizados pelo governo, em que a taxa de câmbio pode flutuar dentro de uma faixa pré-estabelecida. Há um teto para a compra de moeda estrangeira, por pessoa física e jurídica. Para os que estão fora das detalhadas especificações sobra o mercado negro.
A importação e a distribuição de alimentos, medicina e outros itens básicos está entregue a funcionários do governo, em sua maioria militares. Há um sistema de distribuição por grupos de população, com cotas e controle de preços, e uma imensa burocracia. Com a taxa de câmbio para a importação de produtos alimentícios e farmacêuticos a 10 bolívares por dólar o incentivo à corrupção é escancarado: se alguém tem acesso a dólares a essa taxa e consegue desviar alguns pode ganhar muito no mercado negro, onde o dólar no início de agosto passava de 15.000 bolívares![4]
Segundo vários analistas a crise de abastecimento se dá também pelo alto endividamento externo da Venezuela e pela maneira em que o governo está administrando o serviço dessa dívida. Há pouco ainda não se falava em perigo de défault da dívida externa venezuelana. Essa dívida, que era de 25 bilhões de dólares em 2005, seria hoje superior a 120 bilhões. O governo Maduro vem pagando pontualmente os detentores dos bônus da dívida externa da Venezuela, mesmo à custa de um encolhimento brutal das importações, que caíram mais de dois terços desde 2012. Já atrasou pagamento de serviços de transporte marítimo e manutenção dos navios petroleiros, deve a estaleiros no Irã e em Portugal, já deu calote em fornecedores, já parou de pagar as empresas com as quais tem contratos de obras públicas (inclusive várias obras da Odebrecht). Até parou de repassar aos sindicatos a contribuição sindical sobre os salários dos funcionários públicos (segundo queixa registrada na OIT). Mas até agora havia confiança nos bônus, ainda que a Moody’s tivesse baixado a nota da Venezuela em 2016, identificando probabilidade de calote.
Agora, de repente, a confiança dos credores abalou-se. Na primeira semana de agosto o banco Credit Suisse proibiu seus corretores de fazerem transações com determinadas emissões de bônus venezuelanos (bônus da PDVSA que vencem em 2022 e bônus soberanos que vencem em 2036). A partir daí começou a se espalhar entre alguns bancos mais uma noção de risco, “risco de reputação”, por lidar com um governo que usa a força bruta contra a oposição em meio a uma crise humanitária. Veio à tona que Goldman Sachs havia comprado mais cedo este ano 2,8 bilhões de dólares de bônus da PDVSA. A oposição venezuelana acusou Goldman de aproveitar a queda de preço do bônus da PDVSA e comprar “bônus da fome” (isto é, bônus que o governo honra mesmo que deixe de comprar alimentos).
Goldman Sachs não foi o único a comprar tais bônus cujo preço caíra com rumores de que a PDVSA atrasara o pagamento dos juros de alguns dos seus bônus em novembro passado. Mas a decisão de Credit Suisse é indício de um agravamento da crise de direitos humanos, pois ainda ano passado o banco suíço havia assessorado a PDVSA em uma reestruturação de dívida com seus credores.
A questão não é apenas a “reputação”: existe também uma discussão jurídica sobre as condições em que um governo pode repudiar dívidas assumidas pelo governo anterior. A
Assembleia Nacional agora substituída tinha o poder constitucional de aprovar ou não os acordos internacionais do Presidente, e rejeitava um endividamento maior. A nova Constituinte, dominada por Maduro, mudará as leis e eventualmente aprovará reestruturação e emissão de dívida. Mas, questionada legalidade do atual governo, o que faria o governo seguinte? Que garantias terão os detentores de novos títulos de dívida da Venezuela?
Os credores são muitos. Até o Brasil faz parte. O maior credor do governo da Venezuela é a China, que concedeu empréstimos de mais de 60 bilhões de dólares desde 2001, em troca de concessões de infraestrutura e acesso ao mercado. Mas os custos diplomáticos desse apoio são crescentes, pois vem recebendo críticas pela ajuda de emergência e fornecimento de blindados e gás usados contra manifestantes. Além disso, os investimentos e o pessoal chinês nas obras são prejudicados pela crescente violência dos conflitos na Venezuela.
Outro credor é a Rússia, mas o potencial de comércio é menor, limitado à cooperação entre PDVSA e a petrolífera Rosneft (em que o Kremlin detém 75% das ações) e a venda de armas. Uma complicação adicional é Citgo, uma refinaria em Houston, EUA, comprada pela PDVSA nos 1980s, quando o preço do petróleo estava excepcionalmente alto. PDVSA usou metade de suas ações na Citgo para garantia de empréstimos recebidos da Rosneft. Há dúvidas sobre a validade prática de tais garantias caso a PDVSA não consiga pagar seus empréstimos. Uma refinaria russa nos Estados Unidos? O acordo é de pagamento dos empréstimos em fornecimento de petróleo, que a Venezuela tem atrasado e tem cada vez maiores dificuldades em cumprir. O que é mais grave é o fornecimento de armas, em caso de escalada da violência com alguma intervenção externa que vá além da condenação moral e dos esforços diplomáticos.
A crise de abastecimento da Venezuela não tem solução de curto prazo. O anúncio de Maduro de que a Constituinte vai permitir a ele construir uma Venezuela menos dependente do petróleo não tem credibilidade em lugar algum. Não há como aumentar o investimento mantida a atual política cambial, o controle estatal cada vez mais abrangente da produção, e a insegurança dos contratos e procedimentos. Ainda que a Constituinte possa permitir que Maduro aumente a dívida, já não está claro o quanto o país poderá atrair novos credores a ponto de aliviar a restrição às importações mais essenciais. Mesmo com mudança da política econômica, uma reestruturação da dívida, com apoio internacional e financiamento do Fundo Monetário Internacional, é imprescindível para superar o estrangulamento das importações até que o país consiga, lentamente, voltar aos níveis de produção de outrora.
[1] Aliás, quer evitar a politização de outros dados: em maio demitiu sua Ministra da Saúde quando esta divulgou um Boletim Semanal que estava sob embargo e informava grave aumento de mortalidade infantil e materna.
[2] Dados mais detalhados em Txomin Las Heras Leizaola, “De Venezuela a Colombia: la emigración no se detiene”. Nueva Sociedad, agosto de 2017.
[3] O Brasil atualmente só exporta alimentos, de modo que um embargo comercial pelo MERCOSUL só faria sofrer a população venezuelana, e não enfraqueceria diretamente o governo.
[4] No inicio de junho essa taxa do mercado negro ainda era 8.300 bolívares por dólar. Essa é uma história tão velha – vimos, por exemplo, as distorções das taxas de câmbio controladas pelo governo em Angola nos 1980s – que é espantoso que esse tipo de política cambial ainda se aplique. Na Venezuela sabe-se que há até compra de lugar na fila da distribuição de alimentos, isto é, um mercado de revenda das rações. O sistema explica, em parte, porque a entourage de um ditador se aferra tanto ao poder.
P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?
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