Aécio Gomes de Matos

Fonte:

MATOS, Aécio Gomes de. Desenvolvimento Humano, Pobreza Rural e Inclusão Social. Boletim NEAD – Notícias Agrárias, Brasília, 2002.

 

O conceito de desenvolvimento tem sido muito controvertido na história brasileira com predominância absoluta das políticas produtivistas que levaram aos grandes índices de desenvolvimento do pós-guerra até os anos oitenta quando, gradualmente, a recessão, a hiperinflação, o desemprego crescente e a gigantesca dívida pública mantida a juros estratosféricos, praticamente decretaram a falência de um modelo que nem mesmo os aliados mais próximos do governo se aventuram a defender explicitamente.

Eis que surgem, nas últimas décadas, modelos alternativos de desenvolvimento preocupados com uma maior eqüidade social que inclui distribuição de renda, segurança alimentar e garantia dos serviços sociais básicos de saúde e educação para os grandes contingentes excluídos da população. Um número crescente de economistas e cientistas sociais acredita que esses requisitos não têm apenas um caráter humanitário, mas deles depende o desenvolvimento de um país e o próprio crescimento econômico.[1]

Acrescenta-se a esta opção distributivista o compromisso do desenvolvimento com sua própria sustentabilidade com foco na manutenção das condições de exploração da natureza ao longo do tempo, mas também a manutenção das organizações produtivas, dos arranjos institucionais e políticos, das relações de mercado. Um compromisso com a estabilidade das soluções encontradas  e com as gerações futuras.

Esse conceito de desenvolvimento sustentável já rompe com os modelos de desenvolvimento que privilegiaram o crescimento econômico e a racionalidade tecnológica, numa perspectiva produtivista e predatória, desconsiderando ou tentando nivelar, segundo os interesses dominantes, as contradições decorrentes do desequilíbrio de forças entre as nações, as regiões e as classes sociais.

Esse novo paradigma, partindo das possibilidades reais de uma evolução dialética das relações político-institucionais em todos os níveis, defende modelos de desenvolvimentos que articulem o caráter subsidiário dos interesses entre países e regiões com recursos naturais, vocações, graus de desenvolvimento e culturas diferentes e, até mesmo, antagônicas. Defende o homem e, particularmente, sua qualidade de vida sobre a terra, como centro e objetivo derradeiro do desenvolvimento, eliminando-se a miséria e a dívida social à qual se vê submetida a maioria da população mundial.

Mas o horizonte desta nova proposta de desenvolvimento, além de colocar o foco nas  questões regionais e sociais, procura estabelecer um compromisso com a permanência das soluções mobilizadas ao longo do tempo, não apenas pela preservação conservadora dos recursos naturais, mas pelo desencadeamento de processos históricos conseqüentes que considerem, além da disponibilidade de recursos, a evolução das necessidades e das alternativas tecnológicas.

Do ponto de vista político, o Desenvolvimento Sustentável deveria procurar favorecer a evolução e a estabilidade das instituições democráticas, estabelecendo instrumentos de acesso à participação e de controle social das estratégias e da operação das ações, investindo numa “nova” mediação econômica, política e ambiental que seja mais compatível com a ética da solidariedade entre países, regiões, classes sociais e gerações.

Numa direção complementar, o conceito de desenvolvimento vem sendo associado às condições locais onde se identificam mais claramente um território geográfico, político e econômico com atores que podem desenvolver de maneira mais objetiva as mediações acima referidas. [2]

Reforçando esses compromissos do desenvolvimento sustentável, vem sendo proposta a idéia de Desenvolvimento Humano, sem que ainda se tenha esboçado um referencial conceitual mais consistente. Compreendendo que esse conceito poderia ser útil nas estratégias de abordagem da problemática das comunidades excluídas, tomamos a iniciativa de oferecer aqui uma contribuição inicial a essa idéia, tendo em vista os aspectos mais operacionais do processo de inclusão social de que trataremos mais adiante.

Em princípio, o conceito de desenvolvimento humano não poderia deixar de ter uma referência explícita à declaração dos direitos humanos, refletindo um compromisso fundamental de promoção da autonomia, do bem-estar e da dignidade dos indivíduos. Nesta visão, desenvolvimento e direitos humanos são orientações compatíveis e coerentes na preocupação e motivação, embora possam assumir estratégias diferentes e complementares; o desenvolvimento humano se orienta para o progresso da vida e do bem-estar das pessoas; os direitos humanos para assegurar os direitos civis e liberdades democráticas.

Vale salientar que, embora inspirada nas referências que a Organização das Nações Unidas utiliza para avaliar e analisar o desenvolvimento no mundo, o interesse da abordagem do Desenvolvimento Humano não pode se limitar à associação dos indicadores quantificados pelo IDH (renda, educação e saúde). Do nosso ponto de vista, há que dar ênfase também a indicadores qualitativos que se compreendem na Declaração Universal dos Direitos Humanos como liberdade, autonomia, segurança alimentar, justiça, estado de direito, organização social e política e garantia de acessos às instituições de direito público.

Um processo de desenvolvimento humano

Em primeiro lugar, será necessário estabelecer que o desenvolvimento humano não pode ser compreendido como o modelo típico dos projetos governamentais onde a racionalidade instrumental estabelece metas e fases precisas a serem empreendidas de acordo com uma lógica cartesiana controlada. Projetos que comumente são determinados de fora nas normas e manuais de procedimentos, cujas amarrações institucionais determinam o que fazer, como fazer, quando fazer e por quanto. Quando existem, os processo ditos participativos, nos limites das determinações institucionais, têm o objetivo claro de captar o envolvimento da comunidade para validar a ação governamental e, na maioria das vezes, reduzir custos de implantação e operacionais.

Em segundo lugar, é preciso inverter a iniciativa. As instituições públicas têm por princípio que as comunidades pobres não têm iniciativa e que não são capazes de empreender seus próprios processos de desenvolvimento. Por isto, no momento em que estabelecem as políticas públicas e os orçamentos, assumem a iniciativa de planejar as ações que, segundo sua lógica globalizante, representam as melhores estratégias para solucionar o problema das comunidades pobres. Além dos modismos participativos enviesados referidos acima, convém registrar que, mesmo os governos mais democráticos “permitem” a participação das comunidades nas definições de prioridades para realização de obras públicas e constituem sistemas de controle social sobre a sua execução, sem que isto signifique a constituição mínima de patamares de autonomia na condução dos seus próprios processos de inclusão social.

Em terceiro lugar, as iniciativas assumidas pelas instituições públicas para o desenvolvimento das comunidades, sem reconhecer essa autonomia, terminam por induzir objetivos e metas que estão mais relacionadas com a lógica e o imaginário dos profissionais que representam essas instituições do que com as necessidades concretas e com o imaginário das populações atendidas. Neste contexto, é possível se deparar com alguns paradoxos como a construção de equipamentos sociais que a comunidade não se apropria ou a implantação de culturas agrícolas inadaptadas a uma região ou às práticas tradicionais da população.

O processo de desenvolvimento humano precisaria partir da própria comunidade, de suas iniciativas, de sua criatividade. Sim, porque ao contrário do que se acredita nas instituições públicas, essas pessoas têm iniciativas e criatividade. Só o fato de conseguir sobreviver nas precárias condições em que se encontram, de acumular o suficiente para ter uma moradia e conseguir minimamente o que comer, demonstra um nível de resistência difícil de se reconhecer sem considerar que há muita iniciativa e criatividade. O problema é que quando partem de suas próprias lógicas e iniciativas, as instituições públicas desconhecem, e até mesmo inibem, essas iniciativas locais.

Inverter esse processo representaria uma mudança de lógica das instituições, a começar pela redução das práticas diretivas e pelo desenvolvimento de uma capacidade de escuta e observação da fala e do movimento das comunidades. Depois, pela redução da onipotência que representa a atitude tradicional de planejar para a comunidade, mesmo quando se usam processos participativos induzidos para instruir decisões em programas cujos objetos e objetivos já estão previamente estabelecidos.

Nesta proposta de desenvolvimento humano, o sujeito do processo deve ser a comunidade, a partir de suas próprias iniciativas, dos seus próprios atores. Cabe ao Estado e à sociedade como um todo incentivar e apoiar essas iniciativas, sem tentar conduzí-las. A experiência tem demonstrado que, quando se sentem apoiadas nas suas próprias iniciativas, as comunidades tendem rapidamente a potencializar seus movimentos de organização social, aumentando a sinergia e a viabilidade de suas ações. Justamente o contrário do que ocorre quando essas iniciativas locais são inibidas pelas práticas diretivas institucionais.

O tempo e o movimento da comunidade

Nesta busca de referências para definir um processo de desenvolvimento humano que compreenda os aspectos acima enfatizados, é preciso fazer atenção à questão da temporalidade que tradicionalmente se expressa em prazos e metas determinados pelo planejamento governamental e, muitas vezes, pela falta dele. A pressa que se impõe sobre os projetos e programas de desenvolvimento terminam por sacrificar os reais objetivos pretendidos em função do cumprimento formal das condições impostas às equipes responsáveis pela sua execução.  Assim, além de enviesados na sua concepção de partida, esses projetos dificilmente poderiam ser corrigidos por falta de tempo para observar e ajustar os processos de sua implementação.

 Com relação ao tempo, é preciso fazer atenção também ao caráter gradual do processo de desenvolvimento. É natural que exista uma certa ansiedade quanto aos prazos para solucionar os graves problemas por que passam as populações pobres e, por isso mesmo, além da pressão dos prazos institucionais, existe uma certa tendência em queimar etapas em busca de estágios mais avançados da organização social das comunidades, de sua capacidade de gestão e de produção. É comum se observar projetos de desenvolvimento que induzem à formação de associações ou cooperativas, mesmo quando a comunidade ainda não está sentindo a necessidade real desses instrumentos e termina aderindo porque a eles está condicionado o acesso a algum tipo de vantagem, como a terra e o crédito. Em outros momentos, é possível observar projetos que pretendem organizar comunidades habituadas apenas à agricultura de subsistência numa perspectiva de competitividade em mercados tão complexos como o de fornecimento de insumos para a agroindústria ou de produtos para exportação.

É preciso considerar que a organização social é um processo muito complexo, particularmente quando envolve questões econômicas e mudanças culturais. O tempo para esses processos deve considerar não apenas essa complexidade, mas também a fragilidade das metodologias cujos referenciais teóricos e práticas não vão além das concepções sócio-técnicas e que raramente incorporam as novas correntes que trabalham as questões sociais e comportamentais à luz de fundamentações mais atuais como a psicanálise e as novas teorias institucionalistas.

       Nesta direção, compreendemos que o caráter gradual da evolução das comunidades rurais no sentido da sua organização social e da luta pela melhoria da qualidade de vida, compreende estágios diferenciados e coerentes com o ritmo de cada grupo social, que precisa ser compreendido e respeitado pelas instituições que pretendem apoiar o desenvolvimento humano.

O olhar de uma situação típica

Para exemplificar essas idéias, procuramos visualizar a partir de reflexões sobre o conhecimento empírico, como um processo de desenvolvimento humano poderia ser compreendido em uma situação típica de comunidades rurais do semi-árido nordestino. Segundo anotamos de uma ampla coletânea de estudos organizados por BATISTA FILHO (2001), o semi-árido compreende 900 mil Km2 (56% do território) com cerca de 20 milhões de habitantes e concentra os maiores bolsões de pobreza do País, que se refletem em Índices de Desenvolvimento Humano majoritariamente inferior a 0.5. Esta situação é ciclicamente deprimida pelas estiagens e pela falta de políticas públicas adequadas, que sequer garantem a segurança hídrica de consumo humano ou as mínimas condições de segurança alimentar.

Em semelhantes situações de carência o nível de organização social reflete a luta de cada família pelas mínimas condições de subsistência diante de um quadro político e institucional dominado por oligarquias tão atrasadas quanto desprovidas do mínimo de visão humanitária ou de estratégias de desenvolvimento integrado. O clientelismo político se imbrica à dependência econômica das camadas mais pobres aos coronéis, onde as estratégias individualizadas representam o mínimo de segurança de subsistência. CARVALHO (1998) remarca essa dependência histórica dos trabalhadores rurais quanto às políticas públicas:

“Os baixos rendimentos das famílias dos trabalhadores rurais assentados torna-os dependentes das políticas compensatórias dos governos. Nesse sentido, as associações gerais dos assentamentos tendem a ser tuteladas pelo Estado”.

Além do mais, segundo o autor, essas formas associativas tinham pouca coerência com o propósito de constituir organizações sociais mais sólidas.

“Foram muito poucas aquelas associações gerais de assentamentos onde pode-se constatar o papel de coesão social por elas obtido através da suas práticas sociais. O caráter instrumental dessas associações sempre apareceu como o principal, político e ideologicamente, perante as famílias dos trabalhadores rurais assentados.

Essas entidades constituídas para a interlocução legalizada com o Estado foram usufruídas pelos seus associados na medida direta em que lhes proporcionou vantagens materiais. Nesta perspectiva, tais associações não se revelaram portadoras da identidade social dos grupos sociais que supunham representar.”

Mesmo que não seja possível generalizar a situação do semi-árido, as fragilidades das zonas rurais não são prerrogativas exclusivas desta região: a pobreza faz parte do quadro geral das zonas rurais brasileiras[3], enquanto os níveis de associativismos detectados pelo I Censo da Reforma Agrária no Brasil demonstram que, sobretudo no Nordeste, os agricultores familiares assentados têm um baixo nível de associativismo não induzido (31% sindicalizados e 5% cooperados).

E, pelo que pensamos, essa associação perversa entre pobreza e falta de capacidade associativa é justamente o ponto nevrálgico para a arrancada do processo de desenvolvimento humano. É aí onde as equipes que pretendem apoiar o processo precisam investir suas competências, compreendendo e apoiando os primeiros sinais de iniciativas locais que permitam a articulação coletiva em torno de objetivos comuns. Neste movimento, não se pode desprezar as formas mais primitivas de organização como as relações de parentesco e compadrio, dirigindo a comunidade para outras formas “mais evoluídas” de coletivos orientados para objetivos racionais como as associações, as cooperativas. Uma re-socialização exige novos processos de identificação ou o apoio de sistemas de controle coletivo, cuja confiança tenha sido apropriada por todos.

É a partir destes primeiros níveis de organização que se pode desenvolver ações coletivas mais estruturadas, inicialmente voltando-se para as carências mais evidentes e cuja exeqüibilidade seja mais facilmente captada por cada membro da comunidade, suas famílias e seus grupos de referência. Gradualmente, outros estágios mais avançados da organização social e da produção coletiva podem ser atingidos, desde que não se atropele o processo movido pela impaciência histórica, que costuma acometer particularmente os agentes externos à comunidade ou suas lideranças mais diretivas.    

Como se pode ver no gráfico no modelo simplificado apresentado a seguir, esse processo de desenvolvimento humano evolui em estágios a partir de alguns vetores transversais que redefinem uma visão do conjunto como são as relações de gênero, geração e etnia e as questões ambientais. 

Modelo Esquemático

Processo de Desenvolvimento Humano

 
 

Organização Social

 

Sustentabilidade

Gênero, geração e etnia

Meio Ambiente

Estagio I

Produção Subsistência

Água Consumo Humano

Alfabetização

Saúde

 

Educação

Produção para o Mercado

Inserção Institucional

Estagio IV

Estagio II

Estagio V

Estagio III

Embora esquemático, o modelo apresentado acima serve para melhor fixar os conceitos e referências explicitados de maneira mais descritiva nas páginas anteriores. Fique claro que esses cinco estágios fixados de maneira mais ou menos arbitrária pelo autor, não são situações estanques separadas umas das outras, mas representam apenas uma tentativa de mostrar as ênfases que uma evolução deste tipo pode ter ao longo do processo. Mesmo assim, sabemos que nem de longe essa discrição cobre completamente toda a complexidade do processo que só pode melhor ser compreendido pelo acompanhamento sistemático e regular de cada situação em particular. Não obstante, esperamos que possa ajudar a refletir sobre esse assunto tão importante para as políticas públicas e, mais ainda, para as comunidades pobres.

Estágio I: Organização Social

Como já nos referimos acima, o primeiro estágio que remarcamos no processo de desenvolvimento humano é o da organização social, ponto de partida para todas as outras empreitadas da comunidade. Trata-se aqui do estágio inicial de organização de onde surgem iniciativas locais da comunidade numa perspectiva de sobrevivência diante das agruras da situação. Pudemos constatar que, em todas as comunidades em que trabalhamos, já existe uma solidariedade típica da população que se habituou a se apoiar mutuamente nas horas difíceis, um traço cultural característico dessa região.

O processo de desenvolvimento humano deve incentivar e apoiar essas formas naturais de organização através do suporte de profissionais que tenham competência para assumir o papel de facilitadores com habilidade para ouvir, entender e valorizar os processos da comunidade e ajudá-la a construir  reflexões coletivas sobre as possibilidades de ações, tendo em vista superar as dificuldades do dia-a-dia com algum planejamento, mesmo que seja ainda muito embrionário.

Segundo MORIN (1995 p.57).

 “pode-se conceber, sem que haja um fosso epistêmico intransponível, que a auto-referência conduza à consciência de si, que a reflexibilidade conduza à reflexão, em resumo, que aparecem sistemas dotados de tão alta capacidade de auto-organização que conduzam à uma misteriosa qualidade chamada consciência de si”.

 Já neste estágio o esforço de organização social deve incorporar os componentes transversais de gênero e geração como uma referência diferenciada para associar o papel das mulheres e dos jovens, como uma maneira de fortalecer o reconhecimento e o engajamento do esforço conjunto de homens e mulheres na luta pelo desenvolvimento.

Como fator de organização social e de preparação para a evolução do processo de desenvolvimento humano, neste estágio já poderiam ser realizados diagnósticos das condições básicas da comunidade e apontadas as ações que visam, fundamentalmente, estratégias de curto prazo para superar as dificuldades mais emergentes. Nestes diagnósticos trabalha-se, fundamentalmente, a partir do conhecimento da comunidade sobre sua realidade e sobre as condições que estejam disponíveis para um plano de curto prazo, preferencialmente usando-se dispositivos metodológicos que permitam a própria comunidade assumir a condução do processo.

Estágio II: Produção para Subsistência

Inicialmente, o movimento da comunidade para a organização social se orienta naturalmente para racionalizar coletivamente, o esforço para o qual a motivação é mais forte que é o da subsistência com água de qualidade para consumo humano e a garantia de alimentação das famílias, sobretudo das crianças.

A base do processo a ser implementado neste estágio é resultado dos diagnósticos realizados no 1º estágio, particularmente relacionados a ações emergenciais, numa perspectiva de tirar a comunidade da situação crítica em que se encontra.

É agora que se podem resgatar as reflexões coletivas sobre a transversalidade das questões ambientais, primeiramente, nas discussões que a localização e mobilização de fontes possíveis de abastecimento e armazenamento de água para o clima do semi-árido, em condições sanitárias que possam garantir o consumo das famílias durante os períodos de estiagem, a exemplo do Programa 1 Milhão de Cisternas que vem se implantando com sucesso em várias comunidades da região.

Em segundo lugar, a transversalidade ambiental surge nas discussões sobre a produção de subsistência considerando as condições climáticas e a capacidade de resistência das espécies cultivadas, retenção de recursos hídricos, conservação de solos, silos para a alimentação animal, entre outros aspectos que mobilizam a reflexão e a educação ambiental. Ainda neste estágio, pode-se começar a organizar a produção de maneira a possibilitar a comercialização dos excedentes do auto-consumo, visando gerar renda complementar para fazer face aos bens de consumo necessários à alimentação básica e às despesas fundamentais com saúde, habitação e vestuário. É importante distinguir esse estágio de produção dos posicionamentos mais estruturados e economicamente dimensionados para o abastecimento regular de mercados; confundir esses dois movimentos pode levar a comunidade a realizar empreendimentos para os quais pode não estar ainda preparada (particularmente do ponto de vista gerencial e tecnológico) e conseqüentemente contrair empréstimos e realizar investimentos com altos riscos de frustração e inadimplência.

Estágio III: Estruturação para o Desenvolvimento

Depois de terem sido constituídas as condições sustentáveis de subsistência é que o processo de desenvolvimento humano evolui para outros estágios, com o reforço da organização social da comunidade potencializada pelas conseqüências positivas dos dois primeiros estágios. Na prática, os resultados objetivos para a qualidade de vida das pessoas, ainda que pouco expressivos economicamente, são os maiores avalistas para a comunidade continuar a investir no processo sistemático de organização com uma práxis que considere e valorize o saber e as opiniões de homens e mulheres na construção de projetos de interesse comum.

É a partir desta constatação que a comunidade passa a um estágio do desenvolvimento humano onde os frutos não se medem em curto prazo, mas cujo investimento é absolutamente necessário para uma construção futura compreendida numa perspectiva mais ampla de inclusão social, de cidadania e de sustentabilidade. Trata-se de um estágio onde se lançam as bases de desenvolvimento, particularmente no que diz respeito aos ativos que representam as condições fundamentais de produção rural como infra-estrutura produtiva e educação.

Neste estágio, pode-se reforçar a importância da transversabilidade das questões ambientais, não apenas do ponto de vista das práticas de conservação, mas na construção de modelos mais elaborados de exploração do meio rural, numa perspectiva agro-ecológica, onde, além da exploração produtiva, as famílias rurais possam contribuir para a valorização do mundo rural, como uma opção diferenciada em termos de qualidade de vida, inclusive ampliando as oportunidades econômicas pela demanda dirigida ao público urbano cada dia mais submetido a precárias condições de tensão e insalubridade das grandes cidades.[4]

É também neste estágio que se ampliam os investimentos em formação técnica das famílias tendo em vista a ampliação da qualificação profissional voltada para o desenvolvimento produtivo, no plano gerencial e tecnológico. É importante dizer que não se trata pura e simplesmente de despejar uma carga de conhecimento através de cursos de formação ministrados por profissionais supostamente competentes em suas áreas especializadas. A qualificação profissional das famílias rurais tem que partir de suas próprias experiências e curiosidades sobre inovações a partir das quais se podem estabelecer diálogos com profissionais que possam contribuir com seu conhecimento para o aperfeiçoamento das práticas locais. Em muitos casos, é extremamente oportuno o intercâmbio de experiências entre agricultores com os mesmos problemas e até mesmo o estabelecimento de laboratórios de experimentação onde eles possam testar alternativas mais adequadas às suas realidades e depois difundi-las.    

Neste estágio, são formulados os diagnósticos com vistas à definição de projetos estratégicos para o desenvolvimento econômico e social da comunidade, na perspectiva de médio e longo prazo, voltados para a implantação de infra-estrutura e serviços sociais, habitação, lazer e para criar meios de produção e comercialização, como base para a geração de uma renda compatível com as condições fundamentais de dignidade humana.

Neste 3º estágio, a comunidade, já com um nível superior de organização, se mobiliza, finalmente, para viabilizar o financiamento e a implementação dos seus projetos cuja exeqüibilidade e viabilidade ficaram demonstradas no esforço de racionalização dos diagnósticos e na elaboração criteriosa de projetos.

É também neste estágio que se implementam estes projetos com base na capacidade de acumulação da comunidade organizada e em financiamentos públicos e privados, negociado coletivamente com pleno conhecimento das condições e da viabilidade de resgatar os compromissos assumidos com os níveis de segurança adequados à sustentabilidade. A assistência técnica desses projetos, além da qualificação profissional acima referida, compreende o apoio sistemático de profissionais alinhados metodologicamente com as orientações já mencionadas acima. 

Estágio IV: Produção para o Mercado

O 4º estágio do desenvolvimento humano decorre da operação produtiva dos projetos implantados no estágio anterior, pelo estabelecimento de uma renda regular resultado do posicionamento mercadológico da produção de bens e serviços da comunidade no plano regional, nacional e internacional respaldada por uma racionalidade tecnológica e gerencial que consiga estabelecer padrões de preços e qualidade competitivos.

Trata-se de um estágio bastante avançado da organização e economia comunitária, um desafio muito grande para comunidades que hoje em dia têm dificuldade de se posicionar até mesmo nos mercados locais. Este desafio exigirá, não apenas processos organizacionais muito sofisticados, mas, sobretudo competência gerencial para superar padrões de concorrência tradicionalmente elevados.

Para isto, há que se retomar gradualmente em todos os estágios do desenvolvimento humano e, sobretudo neste, um grande esforço de capacitação dos agentes comunitários envolvidos com estes projetos e da comunidade como um todo, considerando-se que não se trata apenas de atitudes pontuais e individualizadas para fazer frente a uma produção deste nível, exigindo até mesmo mudanças culturais que envolvam toda a comunidade.

Há que se compreender, sobretudo que nos planos organizacional e gerencial a comunidade precisa evoluir para uma atitude de avaliação sistemática, não apenas da qualidade dos produtos destinados ao mercado, mas também sobre a maturidade das relações comunitárias, dos dispositivos de regulação social, da confiança e solidariedade interna entre as famílias e entre segmentos diferenciados da comunidade, com respeito às individualidades e às singularidades dos grupos sociais que continuarão a existir no seio da comunidade como um todo.

Estágio V: Inserção Institucional

Finalmente, o 5º estágio da evolução do processo de desenvolvimento humano, depois da constituição de uma organização comunitária consistente no sentido da formação de sujeito social autônomo, é a consolidação das prerrogativas cidadãs que a comunidade deve assumir em relação às instituições e à sociedade como um todo. É neste estágio que  a comunidade assume plenamente o que as Nações Unidas preconizam como direitos humanos:

  • Ausência de discriminação – por sexo, raça, etnia, nacionalidade ou religião.
  • Ausência de miséria – para usufruir um padrão de vida digno.
  • Liberdade de desenvolver e realizar o potencial humano de cada um.
  • Ausência de medo, de ameaça à segurança pessoal, tortura, prisão arbitrária e outros atos violentos.
  • Ausência de injustiça e de violações ao estado de direito.
  • Liberdade de pensamento e opinião, de participar de processo de tomada de decisão e de formar associações.
  • Liberdade de ter um trabalho digno – sem exploração.

Estes direitos serão finalmente consolidados quando a comunidade for capaz de procurar estabelecer de maneira sistemática os espaços institucionais necessários ao estabelecimento de sua representação em todas as instâncias de organização do estado e da sociedade civil, ao mesmo tempo em que se garantam internamente as prerrogativas e os direitos individuais e coletivos.

É importante distinguir nesta fase de consolidação do desenvolvimento humano, a qualidade da representação da comunidade nas suas relações com outros agentes, de maneira a evitar que os tradicionais estereótipos de lideranças autocráticas falem por si mesmas em nome do coletivo, usurpando um “capital social” manipulado pela dependência de uns e por pretensas competências de outros. A verdadeira consolidação que se pretende neste estágio avançado do desenvolvimento humano, se qualifica pelo nível de autonomia que a organização comunitária tem em relação a esse tipo de liderança, constituindo sua representação de maneira mais democrática, onde o papel e as opiniões dos representantes devem refletir o pensamento e as decisões coletivas. No contraponto dessas delegações, o coletivo deve se aparelhar para monitorar sistematicamente o desempenho de seus representantes, tomando conhecimento das situações e definindo conjuntamente as estratégias, decisões e encaminhamentos a serem implementados, níveis de flexibilização e negociações a serem trabalhados, alianças e parcerias a serem construídas. A comunidade se constitui assim um sujeito social senhor de sua própria história, como um coletivo organizado, uma unidade auto-constituída, se exprimindo pelo reconhecimento recíproco e por sentimento de inclusão, que se caracteriza pelo uso da primeira pessoa do plural, “nós”.

Segundo BARUS-MICHEL (1987 p.27),

“ao contrário do sujeito individual, o sujeito social não se define a partir de um substrato orgânico que lhe garantiria a integridade. É apenas uma organização, uma unidade postulada, construída, que pretende se garantir a si mesma, para estabelecer a lei que especifica o social.”

Considerações finais

Para concluir essa reflexão sobre de desenvolvimento humano, chamando a atenção mais uma vez para o caráter esquemático e, portanto, reducionista desse tipo de esquema, em contrapartida à complexidade das dinâmicas políticas, econômicas e sociais envolvidas,  seria importante frisar que o mérito desses  processos está, mais de que em qualquer outra situação,  associado a um trabalho cotidiano atento às mais simples nuances que envolvem os comportamentos humanos das populações envolvidas, suas questões pessoais e coletivas, suas dificuldades e fragilidades, mas também um saber, uma criatividade e uma solidariedade diferenciada, que se expressam objetiva e subjetivamente no habitus local e num ethus característico desses grupos sociais, onde se enraízam não apenas as resistências e dificuldades iniciais, mas sobretudo as inovações e as potencialidades que podem contribuir decisivamente para a inclusão social das populações rurais.

Seria importante que essa concepção de desenvolvimento pudesse ser compreendida pelos agentes responsáveis pelas políticas públicas que tem como foco o trabalho com as populações consideradas excluídas, mudando os comportamentos institucionais clássicos de criação e implementação de programas e projetos decididos nos gabinetes e impostos desde as rubricas orçamentárias; imposição mal disfarçada pelos decantados modelos de  participação que se limitam a definições de prioridades entre tipos de intervenções previamente estabelecidos, que não refletem sequer a lógica e a criatividade locais com que essas populações solucionam precariamente seus problemas, não por falta de imaginação mas por falta do apoio que poderia vir dessas políticas.Quem sabe assim poderíamos assistir a processos de inclusão social mais consistentes com mais efetividade na aplicação dos recursos públicos e mais coerência com os fundamentos do desenvolvimento humano.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BARUS-MICHEL, Jacqueline.  Le Sujet Social. Étude de Psychologie Sociale Clinique. Paris, Dunod, 1987. 209p.

BATISTA FILHO,  Malaquias et all. Viabilização do Semi-árido Nordestino. Recife: IMIPE, , 2001. 116p.

BUARQUE, Sérgio. Metodologia de Planejamento do Desenvolvimento Local e Municipal Sustentável. Brasília: IICA. 2001. 132p

GUANZIROLI et all. Agricultura Familiar e Reforma Agrária no Século XXI. Rio de Janeiro: Garamond. 2001. 284p.

HORACIO,  Martins de Carvalho. Formas De Associativismo Vivenciadas Pelos Trabalhadores Rurais nas Áreas Oficiais de Reforma Agrária no Brasil. Brasília: NEAD/IICA. 1998.

MATOS, Aécio. A dialética de Formação e Apropriação do Capital Social nos Assentamentos da Reforma Agrária. Brasília: NEAD/IICA. 2000. 62p.

SILVEIRA, L.; PETERSEN, P. e SABOURIN, E. Agricultura familiar e agroecologia no Semi-árido. Rio de Janeiro: AS-PTA. 2002. 354p.

TEÓFILO, Edson. A Economia da Reforma Agrária. Estudos NEAD Nº 5. Brasília: NEAD/MDA. 2001. 434p

[1] Ver as evidências internacionais desta tendência reunidas em no livro coordenado por Edson Teófilo, A Economia da Reforma Agrária, publicado pelo NEAD/MDA em 2001.

[2] Ver Sérgio Buarque Metodologia de Planejamento do Desenvolvimento Local e Municipal .

[3] A agricultura familiar que concentra 85% dos estabelecimentos agrícolas brasileiros tem uma renda monetária média é de apenas R$ 1.783,00 por estabelecimento, sendo que no Nordeste este valor não supera R$ 700,00 (GUANZIROLI. 2001: 59)

[4] Ver a esse respeito o conjunto de artigos e resultados de pesquisas publicados pela AS-PTA em Agricultura familiar e Agroecologia no Semi-árido Siqueira, Peterson e Sabourin. 2002.

Crise Ambiental | Desigualdade | Educação | Formação | Sociedade e Informação

O compromisso central da mobilização e formação de liderança é com a autonomia do sujeito; uma autonomia, que se diferencia, ao mesmo tempo, do individualismo descomprometido com o social e da alienação do sujeito sob as determinações das estruturas instituídas

- Aécio Gomes de Matos

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