Aécio Gomes de Matos

Fonte:

MATOS, Aécio Gomes de. Democracia, pobreza e participação. In FONTES, Breno e MARTINS, Paulo H. Redes, práticas associativas e gestão pública. Recife: Editora Universitária – UFPE, 2006

 

É minha intenção neste texto trazer à baila uma complexa discussão sobre democracia representativa e participação social, considerando alguns fatores intervenientes que me parecem determinantes para a qualificação desses processos. A hipótese de partida é que a efetividade da democracia depende de algumas condições objetivas como a renda e a estabilidade econômica da população envolvida, o acesso à educação e à saúde, a organização das comunidades locais, a capacidade de mobilização dos movimentos sociais e as assimetrias de poder entre os diversos segmentos sociais. O fato de haver um estado de direito que defina as instituições democráticas é condição necessária, mas não suficiente. Depois de estabelecer algumas referências teóricas para análise da democracia procurei usá-las para definir as bases de uma pesquisa sobre as condições efetivas de democracia no contexto atual do SUS e mais especificamente do Programa de Saúde da Família, objeto de uma pesquisa em fase de desenvolvimento.

O contexto

O processo de redemocratização da sociedade brasileira, desde o início dos anos oitenta, se fez acompanhar de um sentimento cívico de participação política. Simbolicamente, essa participação se expressa, sobretudo, em campanhas como “Diretas já”, em marchas anuais como “O Grito da Terra”, dos trabalhadores rurais sem terra, ou “o Grito dos Excluídos”, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, mobilização anual em protesto contra o ufanismo oficial do dia da independência sem foco para a miséria dos excluídos. São grandes manifestações de massa que, em duas décadas de liberdades institucionais, passaram a ser vistas como expressão das liberdades democráticas e do grau de politização da sociedade. Nesse quadro, a luta dos “caras pintadas” contra a corrupção do governo Collor e a ascensão do Partido dos Trabalhadores à Presidência da Republica, induzem o sentimento cívico de que a democracia se completara no Brasil e que, enfim, o povo havia chegado ao poder.

No contraponto desse sentimento, os escândalos que envolveram o governo do PT, no seu terceiro ano de mandato, provocaram na opinião pública um sentimento de frustração com dimensões semelhantes ao da euforia da vitória. A perplexidade pegou a esquerda, e a direita, de surpresa e o desencanto tomou conta da massa, expressando-se na queda de popularidade do governo diante da fratura exposta no Partido dos Trabalhadores, até então referência de ética e civismo. O próprio Presidente se disse traído pelos seus pares do partido e se viu obrigado a “cortar na própria carne”, sacrificando os leões, velhos companheiros de militância, diante do ulular de um circo onde se enfileiraram os políticos de direita e de esquerda, inclusive do próprio PT e de outros partidos radicais. Todos pediam sacrifícios com o polegar apontando para o chão e o beneplácito da imprensa, que explorou, até o limite, um grande filão de notícias escandalosas, dignas de qualquer pasquim sensacionalista.

Mas, o que parecia óbvio aos analistas políticos, se reverte, poucos meses depois, com a popularidade do Presidente Lula voltando a crescer para os patamares anteriores, refletindo a falta de consistência política e as oscilações características dos posicionamentos da massa.

É diante desse quadro que escrevo esse artigo, certo de que não se pode perder a guarda sobre o contínuo aperfeiçoamento do processo democrático, nem deixá-lo ao sabor dos movimentos de massa. A solidez da democracia em países como o Brasil não repousa em berço esplêndido sob a égide de instituições outorgadas pela elite ou pela vanguarda política; há que se fazer atenção às antinomias da democracia representativa e às consistências e fragilidades dos processos de participação direta da população na vida política.

Democracia e representatividade

O conceito de democracia tem sido usado a torto e à direita para justificar orientações políticas tão diversas quanto o capitalismo, o socialismo e até o nazismo, cujo estado se propunha a garantir o corporativismo estatal em nome de uma cidadania étnica. Por isso mesmo, é preciso estabelecer algumas precisões quanto aos significados da democracia.

O conceito mais puro de democracia como expressão “governo do povo” remete erroneamente à idéia de que o povo estaria no poder e as decisões políticas emanariam diretamente do povo. Nada mais falso. Existe uma diferença fundamental entre democracia direta e democracia representativa que precisa ser esclarecida. A democracia direta, cujas referências à tradição estão na república grega, compreende a autoridade política associada ao exercício direto do poder do povo para tomar decisões nos assuntos de interesse comum e não pode ser associada aos modelos atuais de democracia participativa. Segundo GODBOUT (2005: 91) a democracia grega tem suas raízes na organização das sociedades primitivas que evoluíram em milênios, desde o período neolítico, quando os bandos humanos fundavam espontaneamente regimes democráticos quase puros e perfeitos, onde os membros dos coletivos exerciam o direito de expressão e de oposição e as discussões continuavam por tempo indeterminado até se atingir a unanimidade.

A democracia representativa, por sua vez, surge no período medieval como expressão do exercício da cidadania das classes populares em oposição ao poder absoluto dos soberanos e das classes aristocráticas. Essa nova forma de democracia que nasce da oposição simboliza o poder do povo em contraposição ao domínio de um governo central, externo às comunidades. Define-se, pois, pela oposição. Segundo este autor, a evolução de democracia direta durante milênios poderia caracterizá-la como a forma natural de regulação social se comparada aos poucos séculos da experiência da democracia representativa, permanentemente em crise. Marcada por movimentos revolucionários (França, Inglaterra, Estados Unidos da América,…) o modelo representativo se institui como uma forma de governo, cujo poder deve emanar do povo, mas também pode se exercer sobre o povo. O representante não apenas representa o povo, mas tem um poder próprio que lhe permite tomar decisões, inclusive decisões que podem contrariar os interesses de seus eleitores. Nas sociedades de classe, os governos eleitos, mesmos aqueles identificados com as camadas mais populares, terminam por se constituir como uma elite diferenciada. Muitas vezes esses grupos, no poder, exercitam suas funções públicas com interesses e comportamentos que não correspondem às expectativas dos seus eleitores. As constantes oscilações das pesquisas nos mais diversos contextos eleitorais tendem a refletir esses desencontros.

A suposta racionalidade e intencionalidade dos processos de escolha pelo voto direto parece limitada com relação ao cidadão comum, ao povo. Na prática, o processo eleitoral se desenvolve através de verdadeiros bombardeios da mídia e do marketing político vendendo ilusões e compromissos genéricos, projetando imagens de candidatos nem sempre condizentes com a realidade. Os comportamentos oportunistas, clientelistas e patrimonialistas são comuns a muito políticos que se perpetuam nos parlamentos e no executivo, sem que haja meios de cobrar os compromissos ou o exercício da representação compreendida no modelo de democracia representativa.

Esses intermediários, entre as prerrogativas institucionais do cidadão e o exercício efetivo do poder republicano, dão uma dimensão real do conceito de democracia nas sociedades contemporâneas. Isso sem falar na parte do exercício das atribuições do Estado por profissionais que legitimam, não pelo voto, mas pela competência profissional, uma nova forma de poder tecnocrático. Na democracia representativa atual, a representação parlamentar, os eleitos do poder executivo, as tecnocracias, substituem as elites aristocráticas, sem que tenha havido mudanças mais profundas no exercício do poder. Na prática, são as elites e as vanguardas que continuam falando e decidindo em nome do povo, legitimadas ideologicamente ou por sistemas legais instituídos em nome do povo e para o povo.

WORNS (2005), analisando a crise de legitimidade da democracia representativa na França, reconhece que as origens da dicotomia entre representantes e representados remontam à revolução francesa. De um lado uma elite esclarecida que tinha competência e argumento político para defender os princípios de direitos universais, do outro, a massa de analfabetos que constituía a maioria do povo.

Desde as suas origens as fragilidades da democracia residem na falta de fidelidade dos representantes e de canais regulares de expressão popular que permitam o controle da vontade eleitoral enviesada pelo domínio econômico e pelo discurso ideológico. Tudo isso tem levado a uma retomada “nostálgica” do interesse sobre mecanismos que se supõem de democracia direta, simbolicamente interpretada pelas diversas formas de participação direta em decisões envolvendo as políticas públicas.

Mas esse afã de uma participação mais ativa da população não é coisa do momento político brasileiro. Segundo GHON[1] o surgimento dos conselhos na gestão pública ou em coletivos da sociedade civil é tão antigo quanto a democracia representativa, remontando ao período medieval. Evoluíram na história e foram tratados diferentemente, ora como instrumentos de colaboração na filosofia liberal, ora como dispositivos políticos para impor a vontade popular pelas esquerdas. Para Hannah Arendt (apud GOHN) os conselhos consistiriam na única forma política para o exercício de um governo que tenha como princípio a participação e a cidadania.

Neste sentido, a participação direta da população em conselhos setoriais (saúde, educação, cultura) ou regionais (orçamento participativo, desenvolvimento local), como órgãos de assessoramento e controle da sociedade civil sobre a administração, não é uma herança da democracia direta que existia nas sociedades primitivas, mas simplesmente instrumento de correção do viés centralizador, autocrático e elitista da própria democracia representativa. Por isso mesmo, a questão participação, enquanto contraponto da representatividade na democracia participativa, carece de um olhar mais atento.

Democracia e pobreza

Na prática, pode-se observar que no Brasil, com certa freqüência, os espaços de participação popular nas políticas públicas não conseguem se abrir à participação do cidadão comum. A instauração dos conselhos, a partir do final do século passado, pouco interferiu nos processo de decisão da União, dos Estados e municípios sobre a concepção, a prioridade e as alocações orçamentárias para as políticas públicas decididas nos escalões dos ministérios e secretarias e aprovados nos parlamentos. Conforme analisarei mais adiante, RIBEIRO (1997) afirma que, apesar dos conselhos terem sido constituídos sob pressão popular, não se pode desconhecer o papel dominante do Estado na definição dos espaços de participação e do status de representação dos grupos de interesse e da própria agenda política dos conselhos gestores.

Na prática, essa descentralização ocorre principalmente no plano operacional, ora nas decisões para priorizar a aplicação dos recursos orçamentários (tipo orçamento participativo); ora na geração de informações da comunidade, úteis ao controle social. Uma participação limitada que, mesmo tendo o seu lado positivo, não pode ser considerada como uma mudança significativa para a evolução da democracia no País.

Conforme analisarei mais adiante, os limites desse processo parecem mais claros quando se sabe que a participação nos conselhos termina se transformando em novos dispositivos de representação onde o cidadão comum só se expressa através das lideranças das associações comunitárias do seu bairro ou pela intermediação de profissionais de organizações não governamentais. Mesmo o caráter paritário da participação dos usuários perde significado quando cotejado ao processo de escolha dos representantes e os mecanismos de manipulação de que dispõem as administrações. A maioria dos usuários continua desinformada e pouco influencia as decisões dos conselhos.

Desta forma, a descentralização limitada da gestão pública permite às lideranças populares articuladas aos movimentos sociais e à política partidária, aos membros de ONGs e aos tecnocratas dos organismos locais exercerem uma fatia do poder, deixando de fora, mais uma vez o cidadão comum, cuja participação se limita às associações locais frequentemente controladas por lideranças, muitas das quais se apropriam da representação como uma prerrogativa pessoal; quando não são articuladas à coordenações externas às comunidades, nos movimentos sociais e grupos político-partidários. O problema da participação começa assim na dificuldade dessas associações comunitárias se constituírem em sujeitos sociais ativos e autônomos. A maioria das comunidades continua dependente de lideranças que se perpetuam à frente dos conselhos ou como representantes junto às instâncias institucionais. São raras as situações onde se verifica a formação de espaços mais abertos ao desenvolvimento de uma consciência social critica, onde os compromissos políticos se definem e se defendem coletivamente.

A democracia representativa falha aqui como falha nos processos eleitorais onde se escolhem os governantes e os parlamentos. Embora a população esteja formalmente incluída no exercício do voto, a falta de informações precisas sobre o mundo político e o sobre o desempenho dos seus eleitos, não sabe como usar o seu voto e a democracia perde sentido e interesse. Vota-se em qualquer um, por simpatia, por indicação de amigos, … jamais como um ato político com conseqüência para a coletividade. Na falta de espaços de reflexão crítica para avaliar os compromissos e as práticas políticas dos seus representantes, a maioria dos eleitores vota influenciada pelo marketing político ou por interesses imediatos ligados à subsistência. Isso sem falar na influência das relações interpessoais dos cabos eleitorais que atuam na comunidade a serviço de políticos clientelistas. Não, como sempre pensou a esquerda, que o proselitismo político possa conscientizar o povo mostrando os seus direitos e a força da sua união; na raiz do seu conceito, o verbo conscientizar só se conjuga no reflexivo, onde cada um é sujeito e é objeto da ação.

Uma análise mais aprofundada dessa situação de alienação do cidadão comum deve considerar que, historicamente, a consciência política das camadas mais pobres da população já estaria comprometida pelas carências de educação de qualidade, pela precariedade da vida material, pela falta de condições dignas de trabalho, pela subalternidade decorrente de estratégias limitadas de subsistência. Neste sentido, o Relatório do Banco Mundial sobre “Desigualdades na América Latina e no Caribe “Rompendo com a História” (p13), citando Amartya Sem, considera que o acesso à educação e à saúde, além da importância que tem em si para a qualidade de vida dos indivíduos, é determinante para as possibilidades de escolha, associado à influência e ao poder que os indivíduos têm nas suas relações sociais e nos seus direitos políticos.

Nesse relatório se ressaltam as influências entre os processos econômicos e políticos, considerando que os detentores do poder para definir as regras e as normas de controle social são os mesmos que controlam os mercados e os lucros da economia em benefício de uns ou de outros, fator determinante das assimetrias entre grupos dominantes e minoritários. Confirma-se assim a tese da influência circular entre poder econômico e poder político, conforme retratado no gráfico abaixo.

Essa tendência se reflete numa crise sistêmica do processo político e da democracia que, segundo WORNS (2005: 105), se expressa nos dias atuais como uma grande perda de credibilidade e de legitimidade nas instâncias políticas.

A opulência dos ricos humilha a dignidade da maioria da população mundial que vive alienada, abaixo do patamar de pobreza. Segundo os Relatórios de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, mais de 2,7 bilhões de pessoas vivem numa situação de pobreza que faria vergonha aos pobres de algumas décadas atrás. Não apenas pela penúria da vida, mas, sobretudo, pela submissão política, pela irreversibilidade desse quadro. O controle das instituições nacionais e internacionais está nas mãos dos mais ricos, da mesma forma que o controle da riqueza. O problema central não é, pois, econômico, se consideradas as disponibilidades dos recursos. O problema é, sobretudo, de decisão política, já que os mais ricos não acumulam apenas as riquezas, mas, sobretudo, as condições de acessibilidade aos meios de acumulá-la; tanto no plano institucional, como no domínio do conhecimento, da tecnologia, dos mercados. Os vinte países mais ricos do mundo (13,6% da população mundial) concentram mais de 76% do Produto Mundial Bruto. Historicamente, a diferença de renda per capita entre o país mais rico e o mais pobre do planeta que era inferior a cinco vezes em 1820, é hoje oitenta vezes.

Nas periferias do capitalismo, a situação é mais grave. Na América Latina, uma das regiões mais pobres do mundo, os 10% mais ricos acumulam 48% da renda, enquanto aos 10% mais pobres não cabe mais de 1,6%. E é justamente nas regiões mais pobres do mundo que a população é submetida a processos eleitorais manipulados, a governos autoritários ou em situações de conflitos e disputa de poder entre grupos étnicos e políticos sectários.

O relatório do Banco Mundial sobre Eqüidade e Desenvolvimento apresenta o Brasil como o sexto país mais desigual do mundo, com um índice Gini de 0,59, uma situação mais crítica de que o de países como Equador, Bolívia, Paraguai, Etiópia, Guiné-Bissau. Ficamos atrás apenas do Haiti e de mais quatro países africanos (República Centro Africana, Botswana, Namíbia e Lesoto)[2]. O Relatório alerta que a desigualdade é uma armadilha que tende a perpetuar as hegemonias políticas através de mecanismos legais e financeiros.

Essas assimetrias sociais no Brasil privilegiam as elites em detrimento dos grandes contingentes de pobres e remediados, que permanecem alienados, sem articulações políticas nem práticas reflexivas que levem a uma consciência social crítica. E não poderia ser diferente, para Marx, a penúria é, em si, uma condição suficiente da alienação. Na mediação entre esses dois pólos da sociedade estão os formadores de opinião que controlam a mídia e os segmentos da classe média, pretensamente esclarecida, cujas posições não refletem mais do que as tendências midiáticas, num novo ciclo vicioso que desqualifica o processo eleitoral e a democracia representativa.

Democracia e organização social

Estabelecida essa relação entre democracia e pobreza, proponho agora uma análise da consistência do processo democrático com foco na organização social. Para isso será necessário estabelecer, de partida, algumas referências que permitam integrar as dimensões macro e micro sem escamotear as diferenças e contradições dialéticas entre a sociedade como um todo e as instâncias que constituem a base da análise: a organização de massas, a organização política e institucional e a organização de base. (MATOS 2002) Essa análise da relação entre a evolução do processo democrático e essas três instâncias de organização social tem como objetivo central compreender como cada uma delas contribui para a consistência, a continuidade e a estabilidade da democracia em países como o Brasil.

 

 

A figura abaixo procura indicar a imbricação e a diferenciação entre essas três instâncias, como passarei a analisar.

 
   

 

 

 

 

 

Organização de base

 

 

 

A primeira instância, organização de massa, é onde se expressam as mobilizações mais amplas da sociedade com predominância de uma heteronomia controlada pelas instâncias míticas e ideológicas[3]. Nesse nível, a organização se estrutura através da identificação com referências coletivas, como uma causa ou objetivo comum, quase sempre com uma atuação determinante de líderes nos quais se depositam poderes para dirigir e orientar a massa. É aí que se estruturam as dinâmicas sociais e se inscrevem a ação de partidos políticos e de movimentos sociais. No caso do Brasil, é nesse nível de organização e de participação popular que se constrói, sem sobra de dúvida, um dos pilares onde se fundam as grandes mudanças que resultaram na redemocratização recente. Como já me referi no início desse artigo, as “diretas já”, “o Grito da Terra”, “o Grito dos Excluídos”, a eleição de um operário para a presidência da república, os “caras pintadas” são cenas que já se incorporaram definitivamente à história da democracia brasileira. Guardadas as proporções históricas, essas referências simbólicas têm para nós significados semelhantes à participação dos sans culotte nos movimentos que resultaram na revolução francesa e na queda da Bastilha, assim como as mobilizações estudantis de maio de 1968 que tiveram repercussões determinantes nas grandes mudanças culturais e políticas que transformaram a França nas três últimas décadas.

Não se podem esperar mudanças sociais significativas sem o engajamento de grandes contingentes populares no quadro político. O poder simbólico das mobilizações explosivas, com capacidade de empolgação e de ampliação rápida, produz as mensagens ameaçadoras indispensáveis para se ganhar posições no jogo político contra as elites entrincheiradas nas instituições. Mas também não parece seguro depositar todas as fichas desse jogo político nessa forma de organização social, quando se tem em vista assegurar a estabilidade do processo democrático. As mesmas características explosivas e emocionais que respondem pela intensidade e pela eficácia da organização de massa nas mudanças sociais, têm repercussões diretas sobre a instabilidade e o refluxo de sua sustentabilidade política. A falta de estruturas e estratégias organizacionais mais sólidas que garantam comportamentos mais comprometidos e com posições mais sólidas das camadas populares, recomenda procurar estabilidade do processo democrático em instâncias de organização social mais estruturadas.

É importante considerar aqui que, apesar do enorme poder de transformação da organização de massa, é preciso estar atento às suas limitações. É preciso considerar, sobretudo, o caráter emocional e instável do envolvimento das pessoas nesse tipo de mobilização. Primeiramente, é preciso prestar atenção para os aspectos afetivos dos processos de identificação da massa com modelos idealizadoas que servem de referências maniqueístas e que funcionam tanto no sentido positivo (referência de identificação), como no sentido negativo (referência de negação e oposição). As mobilizações de massa se fundamentam assim na impulsividade do comportamento humano relacionada ao imaginário, investida em fantasmas que sacralizam e demonizam figuras públicas ou posturas políticas. As novas tecnologias de comunicação do marketing político, onde assumem importância decisiva as imagens, cores e símbolos marcantes, as palavras de ordem e as músicas que tocam fundo no plano emocional. A aparente racionalidade dos argumentos políticos de fachada dessas mobilizações são meros componentes de uma mistificação que tem mais o objetivo do envolvimento emocional da massa.  [4]

Numa segunda instância, a organização institucionalizada tem um caráter mais estável e se define de maneira sistemática no plano dos contratos sociais, das funções públicas, da divisão política dos poderes, dos direitos e deveres que regulam as relações sociais. A constituição no plano do Estado-nação, a estrutura funcional do aparelho do estado, a iniciativa privada e os códigos que a regem, os partidos políticos, os contratos de trabalho, os sindicatos e os próprios movimentos sociais (mesmos os que não têm personalidade jurídica) são exemplos de organização institucional. São estruturas universais legitimadas ideologicamente que têm como finalidade garantir a estabilidade do processo democrático, mas que, contraditoriamente, podem estar a serviço das elites nos núcleos hegemônicos do Estado, como aparece na filosofia do direito, desde Hegel.

 “as normas universais, as formas de regulação estabelecidas, já existentes nos códigos ou nos costumes não escritos, (…) função ideológica do direito, consistindo em tornar evidente, intocável e sagrado o que é apenas contingência política, o filósofo do direito, torna-se o filósofo do Estado, legitimando no plano ideológico o  que só é justificado pela força.” (LOURAU 1975: 39)

Na mesma instância da organização institucional se garante a democracia e cristalizam-se e se consolidam situações perversas de hegemonias que se perpetuam no poder em detrimento de maior renovação e progresso social. É aí que se opera a dialética entre a organização instituída, instalada no poder das elites, e a organização de massas, com seu poder de contestação e de mudança.

Estado, empresas, partidos, sindicatos, associações, são formas concretas de organização que resultam da mediação entre a organização instituída da sociedade e a insatisfação com o status quo que se expressa nas lutas por mudanças sociais; sempre as forças da situação em conflito com as forças da mudança, como parte da dinâmica da evolução do processo democrático, configurando o grau de maturidade e a saúde do processo democrático. Por isso mesmo, as formas de organização instituídas precisam ser simultaneamente sustentadas e criticadas; não havendo lugar para uma acomodação, para a defesa incondicional de posições políticas, nem para posturas intocáveis, por mais honestas e justas que sejam as causas defendidas e a história das organizações e pessoas envolvidas.

Volto aqui à questão da democracia representativa, onde esse contraditório institucional se expressa de forma direta quando os governantes e parlamentares operam por delegação de seus eleitores em projetos concebidos de forma autocrática; é assim que servidores e dirigentes de órgãos públicos decidem, de forma tecnocrática, em nome do Estado republicano; é assim que muitas lideranças se apropriam dos mandatos dos seus liderados em defesa dos seus próprios projetos pessoais ou corporativos. E os representados pouco podem contra a ação dos seus representantes, a não ser não sufragar seu nome nas eleições, atitude improvável já que a massa de votos se decide na empolgação da campanha, na relação com os cabos eleitorais, no seguir a onda dos formadores de opinião. São contradições da democracia representativa, que se refletem e que precisam ser trabalhadas na instância institucional que não se basta a si mesma, que não garante, por si, a consistência do processo democrático.

Para compreender a terceira instância, a organização de base, quero remarcar a fragilidade das referências à autonomia do sujeito individual ou coletivo, nas duas primeiras instâncias de organização descritas acima. É, pois, na organização social de base que se vai buscar a diferenciação dos processos heterônimos de regulação social determinados pela adesão à impessoalidade das massas ou pela submissão aos condicionantes universais das instituições.

Com o resgate do indivíduo como sujeito, não pretendo aqui defender posições do individualismo metodológico numa perspectiva liberal, na qual a ação individual é determinante do equilíbrio social e a regulação social se produz pela mão invisível do mercado. Ora, aí também o indivíduo continua a ser uma figura abstrata, e a referência individualista visa negar o papel do Estado. O resgate do conceito de sujeito tem aqui a clara intenção de colocar em pauta o papel relativo dos indivíduos e dos coletivos no foco da questão da organização social.

As ciências sociais foram, historicamente, palco das disputas entre as teorias que contrapõem, de um lado, o primado do social sobre o indivíduo, como defendiam autores clássicos como Emile Durkheim; do outro, uma posição inversa, reivindicada pelos defensores do individualismo metodológico, como Max Weber. Aos poucos, ao longo de mais de um século de construções teóricas surgem novas teorias buscando sair do impasse desse maniqueísmo para encontrar mediações que compreendessem determinações do social sob influência das ações individuais abrindo espaços para compreensão de dinâmicas mais complexas de mudanças sociais, fundadas na interação humana, na comunicação ativa, na reflexão crítica e na consciência coletiva.

É justamente nesse terceiro nível de organização social, a organização de base, que essas interações sociais parecem ser mais plausíveis. Os grupos e as comunidades de base se constituem espaços adequados para a interação social onde é possível a emergência de sujeitos individuais e coletivos, onde os atores sociais não são identificados pela universalidade das instituições, nem pelo anonimato da participação da massa nas grandes mobilizações.

É na organização de base, onde se pode praticar uma democracia direta, onde os indivíduos podem falar por si mesmos nos pequenos coletivos locais dos núcleos comunitários, das relações de vizinhança, dos núcleos de interesses em comum, dos grupos de trabalho, da solidariedade nas lutas do dia a dia. Nesse nível de organização, as pessoas se reconhecem e se identificam mutuamente, se relacionam diretamente umas com as outras e não através de representantes; escutam-se e desenvolvem laços afetivos e constroem juntas suas histórias individuais e coletivas. A base é um espaço onde se pode construir práxis pela reflexão crítica das experiências coletivas, onde se constituem sujeitos sociais autônomos que se expressam nas relações com outros sujeitos sociais, com as autoridades instituídas, com outros segmentos da sociedade.

É nesse nível de organização que se concentram minhas pesquisas e experiências de campo, com foco em abordagens metodológicas diferenciadas e comprometidas com posturas reflexivas que contribuam para a formação de coletivos conscientes voltados para a consolidação da democracia da eqüidade e da justiça social. Compreendo que a articulação da organização de base com os dois níveis anteriores, pode garantir o respaldo e a continuidade das lutas políticas dos movimentos de massa e contribuir com uma vigilância sistemática para a consolidação das instituições democráticas.

Esse argumento, que pode parecer evidente a uma análise teórica, nem sempre é bem visto na prática política. Ao contrário, em períodos recentes das lutas políticas no Brasil, a organização de base tornou-se um tema proscrito. A palavra basismo assumiu um caráter pejorativo na argumentação das vanguardas que se apropriaram dos espaços populares e falavam em nome do povo, no pressuposto de que a população alienada não conseguiria mudar os destinos do País. No momento atual, os tempos mudaram e os movimentos sociais reinscreveram o tema da organização de base numa pauta mais comprometida com as mudanças e com a democracia do que com projetos quiméricos de revoluções que passaram ao largo das demandas mais caras às classes populares.

De fato, é fácil concluir que o futuro da democracia brasileira, não pode ficar na dependência das mobilizações de massa, nem acreditar que as instituições já são suficientemente fortes para se garantirem. Na prática, a experiência mostra que muitas das nossas instituições, em particular as que garantem os direitos sociais como educação, saúde, previdência, ficam a reboque de ajustes políticos conjunturais; enquanto outras, como a justiça, a segurança pública, a regulação dos mercados, dependem fundamentalmente do poder econômico que as controla. As garantias institucionais que configuram a evolução política e a maturidade democrática de uma sociedade não podem depender apenas do ordenamento institucional que configura o estado de direito. Há que se garantir também a todos os cidadãos e cidadãs uma inclusão institucional que se efetive no exercício da cidadania, no espaço correspondente ao mundo da vida na teoria de Habermas.

Democracia, instituição e organização social

Proponho agora uma leitura mais operativa desse referencial analítico com foco no aperfeiçoamento da democracia, partindo do modelo que Robert Dahl (1971) desenvolveu para análise da evolução das sociedades na direção da democracia. Para este autor, a democracia se constrói pela articulação entre duas dimensões fundamentais. Uma, que mede o grau de institucionalização das regras que garantem o pluralismo político; outra, que mede a proporção da população compreendida por essas liberdades e direitos institucionalizados.

 

         Para Dahl, as oligarquias têm dois caminhos para se transformarem em democracias ou poliarquias, como ele designa um sistema político idealizado onde a democracia está completamente institucionalizada e toda a população teria acesso aos direitos e liberdade democráticos. O caminho um, no qual a institucionalização é outorgada sem uma participação ativa da sociedade. O caminho dois, onde é a participação social que leva à institucionalização. Para este autor, o caminho um resultaria em processos mais estáveis, enquanto o caminho dois resultaria em processos mais tensos e conflituosos.

Imaginada a lógica desse modelo projetada sobre as três instâncias organizacionais definidas acima, e considerando que o exercício da participação política se expressa de maneira diferente nos movimentos de massa e nas organizações de base, proponho aqui um outro modelo de referência que parece útil para análise da evolução da democracia no Brasil. Na prática, procurei adaptar o modelo de Dahl considerando três eixos de referência. O primeiro, para registrar a institucionalização dos marcos legais e normativos da democracia; os outros dois, para registrar a amplitude da participação social. Um deles relacionado à organização de massas, num espectro mais amplo, olhando para participação de amplos segmentos da sociedade; o outro focado na organização de pequenos grupos de base que se constituem nas comunidades e núcleos de interesse em comum.

Uma visão gráfica desse modelo de análise pode ser vista no gráfico abaixo, onde o processo democrático se expressa em três dimensões: institucionalização, participação da base e participação da massa.

 

 

Na leitura desse modelo de análise, para se compreender a evolução da sociedade na direção da democracia, partindo de uma situação “A” para outra situação “B” (mais democrática), há que se considerar o exercício ativo da participação das bases com uma dimensão “b”, a mobilização política de grandes contingentes da população “m” e a consolidação do quadro institucional “i”. Esses vetores se reforçam mutuamente, permitindo enunciar uma hipótese, segundo a qual, a evolução institucional da democracia, mesmo como resposta a movimentos de massa, só teria consistência e estabilidade com respaldo nas bases organizadas da sociedade.

A análise do processo de participação diferenciando esses dois novos eixos, pode evitar um viés freqüente das análises políticas que dão ênfase exagerada para os movimentos sociais mais expressivos com abrangência nacional ou regional em detrimento de reflexões mais aprofundadas sobre a expressão política das organizações locais, da mobilização comunitária.

A participação social no sistema de saúde

A aplicação desse modelo de análise à descentralização das políticas públicas, permite explorar alguns aspectos fundamentais das complementaridades e contradições entre as disposições legais e normativas que se instituíram com base na Constituição de 1988 e as práticas operadas pelos poderes públicos com relação à participação da sociedade. O caso do Sistema Único de Saúde, sobre o qual estou trabalhando como membro da equipe de pesquisa do Núcleo de Cidadania, Exclusão e Processos de Mudança (do Programa de Pós-graduação em Sociologia, da Universidade Federal de Pernambuco), será aqui abordado como uma das situações típicas da atual dinâmica democrática brasileira.

A Constituição Federal, de 1988, estabelece novas e avançadas concepções para o sistema de saúde pública no País, complementadas treze anos depois, em 1990, pela Lei Orgânica da Saúde que define as condições operacionais e as responsabilidades da União, dos estados e municípios, assim como os espaços de participação da sociedade em conselhos de saúde, nos três níveis de governo.

Não se pode dissociar a concepção desse novo modelo de saúde pública da efervescência dos movimentos sociais que se expressaram no renascimento da democracia brasileira a partir da metade dos anos 70 e que resultou na reforma sanitária gestada na VIII Conferência Nacional de Saúde, de 1986. GERSCHMAN (2004) compreende que “os avanços conseguidos na definição da política de saúde em muito se deveram ao papel exercido pela mobilização popular e pelas lideranças do movimento”, inclusive no que tange à implementação da reforma sanitária. Mais especificamente, a autora confirma que os conselhos de saúde resultam “da importante atuação política do movimento social em saúde desde o final da década de 70”.

Com essa influência dos movimentos sociais, a idéia central que orientou a nova concepção do Sistema Único de Saúde foi de racionalizar e democratizar a gestão e as condições operacionais, com maior justiça e controle social, propósitos que estavam no âmago da luta dos movimentos sociais pela cidadania. Os princípios norteadores desse sistema tinham assim seus fundamentos no posicionamento político da sociedade civil e na justiça social. A universalização, a eqüidade e a integralidade do atendimento representavam uma perspectiva de inclusão social de grandes segmentos da população, sem acesso às condições básicas de saúde, ao mesmo tempo em que eram também excluídos do ensino de qualidade e de condições dignas de trabalho, renda, habitação. Nessa perspectiva, orientações estratégicas definidas para o SUS buscaram a efetivação desses princípios pela descentralização e territorialização dos serviços de saúde, privilegiando o papel dos estados e, sobretudo, dos municípios, estabelecendo prerrogativas e responsabilidades em contrapartida de recursos orçamentários vinculados por lei.

Na ponta dessa descentralização cidadã, foram criadas estruturas administrativas visando integrar e articular recursos, equipes e ações sob coordenação local em distritos sanitários que circunscrevem espaços e populações. O distrito sanitário, como subdivisão administrativa do município, é uma estrutura organizacional com autonomia para planejar, tomar decisões estratégicas, implementar e monitorar ações de saúde. No interior de cada distrito, além das unidades referenciais de saúde instaladas, como clínicas e hospitais, existem estruturas operacionais com capilaridade, que são os postos de saúde e as unidades de saúde da família com equipes multidisciplinares (um médico, um enfermeiro, um ou dois auxiliares, seis a dez agentes comunitários de saúde) de atendimento básico.

Sob pressão dos movimentos sociais, como se referiu Gerschman, o coroamento desse processo de descentralização se completaria com a constituição dos Conselhos estadual e municipal de saúde, enquanto instâncias permanentes e deliberativas, sobre as políticas públicas de saúde, de composição paritária entre os usuários e os demais representantes dos gestores públicos, dos trabalhadores e prestadores de serviço.

Em municípios, como Recife, com governos articulados aos mesmos movimentos sociais que impulsionaram a reforma do sistema de saúde, o modelo proposto avançou muito, incorporando posturas cívicas que assumem a gestão participativa como ponto de dispositivo fundamental de gestão, visando ao resgate da dignidade e da cidadania, controle social, combate ao desperdício e à corrupção. Aí, além do conselho de saúde municipal, a participação comunitária se estende aos conselhos distritais, aos conselhos gestores das unidades de saúde. No topo desse processo de participação, estão sete conferências municipais de saúde, uma a cada dois anos, com 550 delegados eleitos nos distritos sanitários. Nessa perspectiva, o SUS representa uma grande evolução na inclusão democrática dos segmentos mais pobres da população, cuja estabilidade é assegurada institucionalmente pela lei de responsabilidade fiscal que obriga aos governantes aplicar importantes recursos vinculados de transferências federais.

Não obstante esses méritos, ainda persistem muitas dificuldades, algumas das quais resultam de contradições internas à concepção do modelo. Os princípios e estratégias que regem o SUS, por exemplo, são basilares ao funcionamento do sistema, mas podem ser ao mesmo tempo fontes de problemas. Alguns desses princípios podem ser, com efeito, complementares e contraditórios. O princípio universalidade, por exemplo, pode entrar em contradição com o princípio da eqüidade quando se trata de levar tratamentos diferenciados ou priorizar segmentos sociais com necessidades e condições diversas. A desejada descentralização, por outro lado, transferindo o atendimento básico para o âmbito local, se confronta freqüentemente com os encaminhamentos dos tratamentos referenciados, submetidos a decisões de especialistas com uma lógica diferente do paradigma da integralidade que orienta as equipes do PSF. Este fato é mais grave quando as policlínicas e hospitais pertencem a outros sistemas (estadual, federal ou privado). De uma maneira geral, é muito complicada a articulação entre esses sistemas, com hierarquias diferentes (quando não, em oposição), particularmente graves quando envolve sistemas de atendimento públicos e privados, onde a lógica do lucro está em contradição com os princípios fundamentais do SUS, focados nos direitos de cidadania.

Estudos realizados por TRAD et all (2002) sobre o PSF, na Bahia, revelam um nível generalizado de satisfação dos usuários quando comparado com a situação anterior, sobretudo quanto ao maior acesso aos cuidados médicos, melhoria do nível de informação sobre o processo saúde-doença. Essa satisfação e reconhecimento refletem a melhoria do atendimento no que diz respeito ao relacionamento com as equipes do PSF no posto de saúde e nas visitas domiciliares (respeito, consideração, escuta, compreensão, acolhida, gentileza). No entanto, esse nível de satisfação com as equipes não tem correspondência quanto aos aspectos organizacionais, como no caso do sistema de referenciamento acima mencionado. Os profissionais, por sua vez, mesmo envolvidos e comprometidos com a filosofia do programa, se queixam da excessiva carga de trabalho, da ausência de infra-estrutura e da falta de sensibilidade dos usuários com os programas educativos.

Apesar da importância desses problemas, o que parece ser questão maior do SUS, a chave para sua expansão e aperfeiçoamento, se coloca no plano do processo de participação da sociedade nas decisões e no controle. Os autores dessa avaliação do PSF, na Bahia, se dizem convictos que

O fortalecimento do controle social no âmbito do SUS e o incentivo à participação comunitária pressupõem uma concepção do usuário do sistema de saúde com competência para avaliar e intervir modificando o próprio sistema.

Tenho uma tendência a concordar com essa posição e, mesmo considerando que esse novo sistema de saúde tem suas raízes no processo de participação política dos movimentos sociais, não me parece evidente que o envolvimento da comunidade é o desejado para fazer o sistema funcionar conforme o modelo idealizado.

Neste ponto, proponho que se coloque de maneira objetiva a questão levantada no modelo de análise que propus acima, que considera a correlação entre a evolução das estruturas institucionais, a participação das organizações de massas, como força de pressão política da sociedade e a participação das organizações de base no funcionamento e controle social do sistema no plano local.

Antigo paradigma da saúde pública

Existem razões concretas para se acreditar que os limites atuais ao desenvolvimento do SUS estão relacionados às deficiências de participação social que, apesar da paridade, não parece garantir que o cidadão comum se faça efetivamente representar. Essa é uma situação típica da sociedade brasileira cuja democracia peca pela falta de uma maior participação das organizações de base. Numa visão singular dessa situação de baixa

 

 

participação da organização de base, o gráfico que apresentei anteriormente ficaria assim.

A falta de participação da base tende a fragilizar a mudança à medida que as instituições evoluíram sem uma participação mais efetiva da base. De fato, os movimentos sociais que originaram a mudança estão hoje mais fragilizados pela própria característica do momento histórico da política brasileira. Para GERSCHMAN (2004)

“Hoje, anos depois e no despontar do novo século, o movimento popular em saúde quase que desapareceu da cena política e os movimentos sociais em geral perderam visibilidade na sociedade e na política brasileira.”

Enquanto isso os espaços de participação no sistema foram assumidos pelas vanguardas e pelas elites tecnocráticas que tendem naturalmente a orientar o sistema na perspectiva de seus próprios projetos e de seus próprios interesses políticos ou econômicos.

Para RIBEIRO (1997)[5], os Conselhos de Saúde podem ser analisados a partir de dois modelos básicos, que podem se alternar mutuamente, um que é chamado de vocalização política, onde os grupos de interesse se concentram em críticas e demandas; outro de pactuação, onde esses grupos estabelecem e institucionalizam acordos políticos e funcionais.

A vocalização se apresenta em situações de conflitos simbolicamente configurado por discursos inflamados e situações de ruptura iminente no ambiente instituído coletivamente. A pactuação, por sua vez, opera com agendas e métodos de planejamento baseados em diagnósticos e soluções de caráter técnico e institucional. Segundo o autor,

Estes modelos não são evolutivos ou causais. Os conselhos onde predomina a vocalização política decorrem de situações diversas, tais como as que resultam de resistências governamentais à sua implantação ou onde as forças político-partidárias, sindicatos, associações de moradores, têm intensa atividade. O caráter instável destes arranjos não decorre de uma necessária fraqueza dos grupos de interesses (podem representar inclusive sua força política), mas sim dos conflitos aí gerados, que tendem a promover fluxos e refluxos na atividade do conselho e momentos de retração na absorção de suas resoluções como agenda pública.

Esse autor considera ainda que os conflitos e pactos fazem parte da economia interna desses conselhos e influenciam a maneira como se definem as relações entre os grupos de interesses e a esfera governamental. Na pactuação, o jogo de forças se define por estratégias de ganhos e perdas ou pelas assimetrias de poder entre gestores públicos, trabalhadores e representantes da comunidade. Nesse contexto, é comum haver manipulação pela política partidária, onde os prefeitos têm o controle das decisões através do voto dos gestores, funcionários públicos e de parte dos representantes comunitários atrelados às práticas clientelistas. Em última instância, por mais democrático que esses conselhos possam parecer, o autor destaca a relevância do Estado na definição das instâncias decisórias, do status de representação dos grupos de interesse e da própria agenda política.

Há duas questões em jogo nessa discussão. De um lado, a dominação dos gestores sobre as decisões e funções políticas dos conselhos; do outro a qualidade da representação dos usuários. LABRA e FIGUEIREDO (2002) consideram que os conselheiros representantes de usuários têm pouca influência nas decisões dos conselhos; enquanto os Secretários de Saúde, que por lei presidem os Conselhos, tendem a impor as propostas do poder executivo, manipulando as reuniões ou fazendo pouco caso das deliberações colegiadas. Os próprios conselheiros parecem ter uma consciência difusa dessa situação, como revela o depoimento de um conselheiro, levantado por GERSCHMAN,  (2004).

“O papel do Conselho é maravilhoso, mas muitas vezes os usuários são bonecos de manipulação. Para legitimar a política do governo (…) porque algumas vezes foram tomadas decisões que o Conselho não deliberou. Quando eles querem fazer, eles fazem”. “Não se reconhece nenhuma decisão do Conselho quando essa contraria o chefe do executivo [o prefeito e seu secretariado]”.

Do ponto de vista da representatividade, esses autores ressaltam as dificuldades de uma participação pertinente dos representantes dos usuários diante da tecnicidade, como são tratadas as questões de saúde, inclusive as questões legais e orçamentárias. A saída para esse imbróglio tem sido encontrada através de programa de capacitação e de uma tendência de se escolherem conselheiros pelas suas competências diferenciadas da média da população, uma elite na comunidade à qual pertencem. Aos poucos esses conselheiros, reconduzidos em sucessivas eleições, terminam por se integrar ao sistema, reféns do modelo de pactuação a que me referi acima.

Em tudo isso, parece que o exercício do controle social sobre as políticas de saúde idealizado pelos movimentos sociais dos anos oitenta, tem sido comprometido pelas dificuldades práticas em aprofundar-se o nível de consciência política das populações mais pobres que são também, diretamente, as mais implicadas e mais dependentes dessas políticas. LABRA e FIGUEIREDO (2002), ressaltando a importância dos conselhos de saúde, consideram que as instituições da democracia brasileira ainda estão impregnadas de forte clientelismo político onde os direitos de cidadania ainda são aceitos “como se fossem favores pessoais, criando-se relações assimétricas de dependência pessoal”.

GERSCHMAN (2004) argumenta que, depois de duas décadas, os movimentos sociais em saúde “quase que desapareceu da cena política” e se tornaram prisioneiros da “confluência perversa” de dois projetos antagônicos: um, comprometido com a cidadania e a democracia; outro, pautado com o neoliberalismo, centrado no mercado e na redução do Estado e das políticas públicas. A autora considera inda que nesses conselhos “questão da cidadania social e da democracia participativa é apropriada no discurso e instrumentalizada na operacionalização de políticas focalizadas de atenção primaria à saúde”. Nesse contexto, se pergunta qual o papel político, o controle social exercido por esses conselhos e qual a natureza da representação social dos conselheiros.

Ainda nessa linha de reconhecimento da contraposição em importância e dos avanços do SUS e as dificuldades operativas, MARTINS e FONTES (2004) alertam para o fato de que, em se tratando de “uma proposta ousada por se basear num paradigma complexo da saúde coletiva …sua implementação exige ainda correções e inovações importantes”. Esses autores concluem que “as iniciativas de articulação institucional envolvendo diferentes atores/agentes dos programas de controle de endemias são irregulares e muitas vezes desconectados entre si”.

Conclusões

Essas constatações, formuladas por diversos pesquisadores que analisaram em profundidade as condições empíricas de evolução das instituições de saúde no contexto da democracia brasileira, me levam a retomar a indagação teórica que propus neste artigo sobre a interdependência entre os três níveis de organização da sociedade. O institucional, onde se consolidam as instituições democráticas; o de massas, onde se expressam os movimentos sociais; o de base, onde se constituem sujeitos sociais ativos, a consciência e a cultura política necessárias para garantir a estabilidade e a evolução das instituições democráticas.

A hipótese central de trabalho, na minha pesquisa atual, considera que os níveis atuais de institucionalização e democratização do sistema de saúde esbarraram nos limites da falta de cultura cívica e na disponibilidade informação técnica dos usuários e dês seus representantes nos conselhos e conferências que terminam prisioneiros da pactuação que se estabelece sob o domínio dos gestores (RIBEIRO 1997). Com efeito, as questões do Estado (orçamento, prioridades tecno-burocráticas) e os interesses corporativos de funcionários (salários, benefícios, condições de trabalho) e prestadores de serviço (custos operacionais, lucro) tendem a prevalecer, com relação às necessidades e demandas do cidadão comum.

Do ponto de vista intelectual e da militância, o que me parece ser o problema maior desse quadro, é a falta de foco nas questões associativas que envolvem a organização de base. Parece haver certo desânimo diante do tamanho do problema de promover a cidadania para um universo tão grande, levando ao atalho perigoso que se constitui em priorizar a capacitação de líderes (conselheiros) e quadros profissionais, justamente aqueles mais qualificados e diferenciados da maioria da população; daqueles segmentos que estou aqui chamando o cidadão e a cidadã comuns. Nada contra a qualificação de uma elite dirigente e de quadros de vanguarda para a mobilização social ou para os serviços públicos. A questão é de foco. Não há porque escolher o caminho mais curto que leva a atropelar a marcha de uma democracia participativa pelo reforço dos aspectos perversos que se pretende corrigir na democracia representativa.

Sem prejuízo dos avanços realizados nos últimos 15 anos de implantação do SUS, há que se repensar a relação entre o Sistema de Saúde e seus usuários, investindo, sobretudo na formação política das bases da sociedade presente nas comunidades carentes, nas singularidades específicas de cada segmento social. Essa não é uma tarefa isolada dos Sistemas de Saúde e sua concepção e implementação, como projeto de cidadania, deveria ser objeto de uma ampla discussão, envolvendo não apenas as militâncias dos conselhos, mas também os diversos segmentos da academia que estudam a questão (a sociologia, a psicologia social, a antropologia, as ciências políticas, as medicinas). A tarefa de ponta é descobrir e implementar meios que viabilizem a reflexão coletiva, expressão política e a ação do cidadão comum.

Impõe-se de partida dois problemas metodológicos fundamentais. Um, para encaminhar a forma de resgate, análise e ampliação de discussão sobre a situação atual, com maior detalhamento dos potenciais e dos problemas apresentados sumariamente acima; outro, para viabilizar o trabalho nas bases, visando ao estabelecimento de uma práxis que amplie a consciência crítica das comunidades, quebrando a dependência de lideranças estereotipadas e rompendo com as manipulações de políticas clientelistas. Espero poder detalhar melhor as referências necessárias a essas tarefas, ao final da pesquisa em andamento.

Bibliografia

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ENRIQUEZ, Eugene (1997) Organização em análise, Petrópolis. Vozes.

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LOURAU, René. (1975) Análise Institucional.  Trad. Mariano Pereira.  Petrópolis, Vozes.

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NÉRI, Marcelo e CARVALHÃES, Luisa. (2004) O Mapa do fim da fome: o retorno. Fundação Getúlio Vargas http://www.fgv.br/cps/artigos/Conjuntura/2004/Mapa%20do%20fim%20da%20Fome%20o%20retorno_maio2004_RCE.pdf

PAGÉS, Max (1998) Le phénomène révolutionnaire: une régression créatrice. Paris, Desclée de Brouwer.

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[1] GOHN, Maria Gloria. O papel dos conselhos gestores na gestão urbana. <www//168.96.200.17/ar/libros/urbano/gohn.pdf>

[2] O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) informa pela imprensa (Folha de São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 2006) que o pesquisador Sergei Soares, concluiu estudo que indica tendência desse índice para 0,574 em 2004, sob efeito dos programas de distribuição direta de renda (bolsa família), mesmo tendo havido uma queda da renda média do trabalhador.

[3]             Ver Eugene Enriquez  (1997) e a forma como ele procura comprende a organização social estruturada em 7 instâncias fundamentais (mítica, sócio-histórica, institucional, organizacional, grupal, individual e pulsional) que se expressam simultaneamente nesses três níveis de organização, mas com peso diferente em cada um dessas níveis organizacionais. 

[4] Ver Max Pagés (1998) e sua análise do envolvimento emocional das massas no fenômeno revolucionário, como uma regressão criativa caracterizada entre suas diversas fases, por um movimento de contestação do poder instituído. Para esse autor a contestação se expressa em forma de utopias de mudanças radicais e absolutas, sem que isso represente formas ordenadas de projetos racionais.

[5] RIBEIRO José Mendes. Conselhos de saúde, comissões intergestores e grupos de interesses no Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública Cad. Saúde Pública ISSN 0102-311X v.13 n.1 Rio de Janeiro jan./mar. 1997

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O compromisso central da mobilização e formação de liderança é com a autonomia do sujeito; uma autonomia, que se diferencia, ao mesmo tempo, do individualismo descomprometido com o social e da alienação do sujeito sob as determinações das estruturas instituídas

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