Aécio Gomes de Matos

Fonte:

MATOS, Aécio Gomes de

A democracia e a organização social de base In: Diálogo em Psicologia Social – Conferencias ABRAPSO p. 301-313: Editora Evangraf, Porto Alegre 2007

Para o discurso formalista, a democracia seria uma consequência direta de instituições consolidadas na letra da lei e os direitos de cidadania estariam assegurados justamente pela legislação e pelos compromissos das autoridades assumidos em suas declarações políticas. Ledo engano que nos deixa com cara de bobos, a esperar que os direitos e a justiça social se estabeleçam como um passe de mágica, só porque esses são direitos universais; só porque somos todos iguais perante a lei; só porque vivemos em um país democrático.

Ora, tudo isso parece mistificação quando percebemos que, de fato, as pessoas não são iguais perante a lei. As de renda mais alta parecem ter mais influência sobre as políticas públicas, inclusive sobre aquelas políticas que interferem na distribuição de renda, do que as de baixa renda. (WEAKLIEM, ANDERSEN & HEATH 2005). O próprio Banco Mundial, sempre muito genérico em relação ao conceito de democracia, revela em seu relatório sobre Desigualdade na América Latina e no Caribe “Rompendo com a História” (2003: 13) que o acesso a serviços de qualidade em educação, bastante desigual em países como o Brasil, é determinante para as assimetrias quanto à influência e ao poder dos segmentos sociais na defesa dos seus direitos da cidadania.

Os conceitos de liberdade e igualdade que aparecem como fundadores das democracias ocidentais e da Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas não resistem aos números que apontam quase a metade da população mundial vivendo abaixo da linha de pobreza definida pelas agências de cooperação para o desenvolvimento. Enquanto isso, uma população de privilegiados que vive nos países mais ricos e que não representa mais que um sexto de 6,2 bilhões de habitantes da terra usufruem de padrões de consumo exorbitantes que estão exaurindo as condições de vida sobre o planeta.   

Se na diferença entre os níveis de consumo das nações se encontram as causas dos desequilíbrios ambientais que estão degradando as condições de vida de toda a terra, são as desigualdades sociais nos países periféricos onde o discurso genérico sobre a democracia aparece de maneira mais crua. De fato, como pode a democracia resistir ao desequilíbrio do poder econômico quando os 10% mais ricos na América Latina acumulam quase a metade da renda total e os 10% mais pobres ficam com menos de 2%. Os episódios freqüentes de corrupção na classe política, de manipulação eleitoral, do autoritarismo dos governantes diante da fragilidade das instituições do Estado, não conseguem esconder as incongruências entre desigualdades sociais e democracia. Para Marx, a penúria é, em si, uma condição suficiente da alienação e, portanto, de negação da democracia.

No Brasil, onde se supõe que a democracia tenha sido instalada pelo restabelecimento do estado de direito no período pós-ditadura militar, as enormes dimensões das desigualdades sociais só refletem o paradoxo entre os direitos institucionais e a cidadania. Como conclui o Relatório de Desenvolvimento Humano, de 2006, do Banco Mundial “Equidade Desenvolvimento”, as raízes da alienação dos mais pobres estariam correlacionadas às histórias de assimetrias sociais em cada País. Nessa perspectiva, a democracia política e institucional não se instala de fato sem equidade social. 

A democracia representativa com eleições regulares e até mesmo com relativa alternância de poder, mesmo superando os limites das classes sociais, como ocorreu no Brasil com a ascensão do Partido dos Trabalhadores à presidência da República e a de muitos governos estaduais, não conseguiu superar a correlação perversa entre poder econômico e poder político. O processo eleitoral e o exorbitante custo das campanhas justificam mecanismos de acumulação incompatíveis com o poder aquisitivo dos mais pobres e levam as alianças, nem sempre pautadas pela ética, com as mesmas elites dominantes que se perpetuam no poder e terminam por determinar as políticas responsáveis pela manutenção do mesmo modelo concentrador.

No caso brasileiro tivemos a ilusão de que os conselhos da sociedade civil seria um caminho mais direto para a democracia e os colocamos na Constituição de 1988, reforçando seu papel como formuladores e como controle social sobre as políticas públicas. Para Hannah Arendt (apud GOHN[1]), os conselhos consistiriam na única forma política para o exercício de um governo que tenha como princípio a participação e a cidadania.

De fato, mesmo reconhecendo os avanços dos conselhos como expressão da militância política na área de saúde, Cortes (2002) concorda pelo menos parcialmente com Grindle e Thomas (1991) sobre as dificuldades das classes populares na América Latina para constituírem mecanismos de representação devido à fragilidade da sociedade organizada para contrabalançar os interesses das elites que dominam a burocracia estatal. Nossas recentes pesquisas sobre “Redes Sociais em Saúde” (MARTINS et all, 2007) confirmam esse caráter pouco representativo com relação aos conselhos de saúde do Programa de Saúde da Família.

As esferas de organização da democracia

Essa controvérsia sobre a participação dos segmentos sociais mais pobres nos processos políticos da democracia brasileira, justifica um amplo questionamento sobre a dinâmica da sociedade civil e, em particular dos movimentos sociais, sua capacidade de articulação nas bases populares e, em última instância, seu poder político mudar o Estado, como pretende Gramsci.

Em um texto anterior (MATOS, 2002), procurei analisar esse processo fazendo a distinção entre três níveis complementares de organização, articulando as dimensões macro e micro da organização social sem escamotear as diferenças e contradições dialéticas entre a sociedade como um todo e as sua instâncias: a organização de massas, a organização política e institucional e a organização de base. Organização de massas, onde se inscrevem as grandes mobilizações (eleições, manifestações, contestações públicas), cuja aparente racionalidade dos argumentos e palavras de ordem não conseguem esconder o clima emocional que os fundamenta e que, segundo Pagès (1998)[2] é indispensável para o engajamento político dos grandes contingentes sociais que representam sua força. A organização institucional se define no plano normativo dos contratos sociais, da divisão instituída dos poderes republicanos, dos direitos e deveres que regulam as relações sociais tornando-se, como diz Lourau (1975: 39), “evidente, intocável e sagrado o que é apenas contingência política, … e legitimando no plano ideológico o que só é justificado pela força.” (LOURAU 1975: 39). Finalmente, a organização de base que se diferencia das duas anteriores por ser o espaço onde podem se constituir sujeitos coletivos conscientes de suas identidades em contraposição à impessoalidade das massas e à universalidade das instituições. A organização social de base é um espaço onde se pode construir a práxis pela reflexão crítica das experiências individuais e coletivas, onde se constituem coletivos autônomos que se expressam politicamente nas relações com outros coletivos, com as autoridades instituídas, com outros segmentos da sociedade.

Na minha perspectiva, não se pode pensar em democracia sem a articulação dessas três formas de organização. Uma reflexão sobre a realidade brasileira segundo essas três instâncias permitiria concluir que, embora já tenhamos avançado muito com relação às duas primeiras, a organização de massas e a organização institucional, pouco se avançou com relação à organização de base. Afirmo isso, mesmo considerando que os movimentos sociais estão bastante consolidados no plano local, tanto no campo como nas cidades. O que avançou pouco foi a autonomia desses segmentos locais, conforme voltarei a argumentar mais adiante.

È justamente nessa deficiência de organização social de base onde se concentram as nossas maiores fragilidade políticas e, segundo penso, repousam as maiores expectativas de aperfeiçoamento do processo democrático. E não é por falta de base: o Brasil nunca teve tantas organizações formadas na base. Em 2002 o IBGE (2002)[3] registrava quase 300 mil entidades sem fins lucrativos, 47 mil das quais estariam comprometidas com lutas sociais em defesa do aperfeiçoamento da democracia.

Do ponto de vista metodológico, a construção desse processo democrático a partir da base chama-se de comunicação reflexiva em Habermas, de praxis em Gramisci, de autonomia em Castoriadis, de política sexual em Reich. O que esses autores colocam em destaque é o processo que permite a formação de uma consciência de si, socialmente inserida, uma articulação estratégica a partir dessa consciência, uma ação coletiva politicamente situada.

É nessa mesma perspectiva que utilizo o conceito de organizador social, colocando o foco nos dispositivos e processos que contribuem para a constituição de sujeitos coletivos, como uma unidade auto-regulada, se exprimindo pelo reconhecimento recíproco e por sentimento de inclusão, que se caracterizam pelo uso da primeira pessoa do plural, “nós”. Segundo BARUS-MICHEL (1987 p.27),

“… ao contrário do sujeito individual, o sujeito social (coletivo) não se define a partir de um substrato orgânico que lhe garantiria a integridade. É apenas uma organização, uma unidade postulada, construída, que pretende se garantir a si mesma, para estabelecer a lei que especifica o social”.

A importância da base no desenvolvimento da democracia justifica, sim, aprofundar a análise desses processos de construção de sujeitos coletivos, fundamentais ao desenvolvimento da democracia. Por isso mesmo procurei orientar minhas pesquisas tendo como referência o conceito de organizador social, trabalhado por Anzieu (1993:179, numa perspectiva psicanalítica, para designar o que ele chamou organizadores psíquicos inconscientes dos grupos sociais, considerando que existe …

“… um roteiro imaginário que se representa entre várias pessoas, o sujeito estando geralmente presente no palco a título de espectadores não de ator. Resulta disso… uma representação grupal interna. Em sua conduta, em seus sintomas, em seus sonhos noturnos o sujeito tenta realizar esse roteiro”.

Partindo dessa referência, o trabalho empírico com comunidades rurais e depois com comunidades urbanas conseguiu identificar outros tipos de organizadores com referenciais sociológicos, cuja ocorrência já havia sido sugerida pelo próprio Anzieu na mesma obra (pág. 97): “Nem tudo se reduz à psicologia, e há organizadores econômicos, sociológicos, históricos”.

Na prática, a análise do material empírico apontou um conjunto bastante amplo de organizadores sociais que aparecem de uma maneira mais ou menos generalizada na história das comunidades estudadas. Conseguimos ordenar três tipos diferenciados de organizadores:

  • Organizadores instrumentais, com a predominância da racionalidade instrumental e da razão técnica.
  • Organizadores simbólicos, respaldando sentimentos de pertencimento, estabelecendo os limites do interno e do externo ao coletivo.
  • Organizadores imaginários, que operam fundamentalmente com o imaginário grupal e com os processos inconscientes de identificação.

Cada um desses organizadores parecia ter uma função diferente e um momento preciso de utilidade. Ao mesmo tempo eles coexistiam simultaneamente se reforçando ou se contrapondo, traduzindo estratégias úteis à evolução da organização comunitária, das relações com as instituições públicas, com os proprietários de imóveis e com a sociedade civil.

Do ponto de vista científico, é razoável considerar que o conceito de “organizador social” e sua aplicação à análise sociológica demonstraram não apenas consistência teórica, mas garantiram a formulação de um conjunto de reflexões e sínteses coerentes com a interpretação da realidade social envolvida, podendo servir de base para aprofundamentos posteriores envolvendo outros contextos sociais.

Uma apresentação mais detalhada desses organizadores se justifica aqui como uma referência para aprofundar a reflexão sobre a organização social de base, analisando a maneira como são mobilizados, sua utilidade para a organização das comunidades, sua consistência, eficiência e sustentabilidade no curto, médio e longo prazo.

Organizadores Instrumentais

A organização dos movimentos sociais e sindicais no Brasil nunca foi tão racional. As mobilizações são planejadas com objetivos precisos; as ocupações de terras no campo e de terrenos e prédios nas grandes cidades são organizadas com meses de antecedência; a pressão política é articulada com os prazos da mídia para garantir repercussão social. A organização da comunidade assume o caráter de um dispositivo voltado para resultados práticos e objetivos. Esta racionalidade caracteriza a organização dos coletivos de sem terras e sem teto como instrumento útil para que cada um dos seus participantes possa atingir seus próprios objetivos à medida que os objetivos coletivos sejam atingidos. O que motiva a participação é justamente uma razão instrumental que articula os objetivos de cada participante e o esforço de integração para atingi-los.

Entre os organizadores instrumentais destaco os organizadores políticos que respondem pelas motivações de participação em mobilizações comunitárias e as grandes mobilizações regionais e nacionais que se traduzem como poder de pressão e de ação coletiva. Esses organizadores se fortalecem à medida que aparecem sob forma de reconhecimento da expressão política dos movimentos nas negociações com agências governamentais; na representação política das comunidades junto aos movimentos sociais e partidos políticos; na capacidade de coordenação das manifestações de rua; na hierarquia de decisão e controle social pela hierarquia dos movimentos. São expressões que dão segurança às pessoas e garantia de que a ação coletiva tem mais força política de que o esforço isolado de cada um: O MST, ele é um movimento assim de força, quando tem uma coisa assim, eles conseguem.  ( 2,3) [4].  

Os movimentos sociais aparecem assim como dispositivos libertadores, éticos e identificados com as populações pobres (desde o fundamento, até hoje, nós tamos aqui através do Movimento. – 41, 3); uma opção alternativa de organização política objetiva, numa estratégia de confrontação na luta por uma vida digna para suas famílias; confrontação com “o patrão e seus capangas”, com “o governo e sua polícia”, com riscos calculados e uma chance elevada de sucesso.

Ao contrário do que ocorre com as tramas políticas mais complexas, a luta pela terra e pela moradia tem objetivos bastante claros e o engajamento no movimento social acena com possibilidades concretas de sucesso, justificando o engajamento e os riscos: Aí o pessoal do sindicato passou anunciando num carro de som aí eu fui lá pra reunião e ingressei no movimento. (54; 1)

Esses organizadores políticos podem funcionar em duplo sentido, como uma força para enfrentar patrões e governo, mas também como poder disciplinador do próprio movimento, inibindo a explicitação das contradições e discordâncias em contraposição aos grupos hegemônicos. … ou a gente aceitava a cooperativa, ou quando a terra fosse desapropriada, nós ia pra outra área. Aí, nós, bestinha, aí teve a obrigação de aceitar a cooperativa.– (36, 3)

Um outro tipo de organizador instrumental com grande significado para as comunidades organizadas são os organizadores econômicos, mobilizando para o engajamento em atividades relacionadas que impliquem os meios de subsistência e a melhoria da qualidade de vida sob o pressuposto de que a união em torno dos movimentos sociais torna os trabalhadores pobres mais fortes: Eu vivia, nas periferias da cidade, desempregado, até passando fome e vim pra terra através do Movimento – (18,6).

No caso das lutas empreendidas pelas populações mais pobres, os organizadores econômicos assumem, da mesma maneira que os organizadores políticos, um caráter instrumental. Sua força resulta de uma ponderação entre a falta de alternativas econômicas e do reduzido custo de oportunidade da aplicação do tempo dos desempregados, em contrapartida a possibilidades reais de acesso às políticas públicas que acenam com financiamento para as populações organizadas.

Nós, através da associação, vamos buscar os projetos, já trouxemos pra cá, já conseguimos o fomento, o alimento, já está em andamento o investimento pra plantação de inhame, coco, banana, também um custeio de mandioca, já está tudo no projeto feito. – (63, 3)

Observamos ainda, com menos importância nas comunidades a existência de Organizadores Gerenciais fortalecendo a capacidade de articulação de comunidades que pretendem obter ganhos de sinergia pela ação associativa nos grupos de produção e comercialização, utilizando processos sistemáticos de planejamento e gestão das atividades coletivas. Esses organizadores aparecem mais raramente justamente porque, diferentemente dos organizadores políticos, a maioria não compreende os processos envolvidos.

Aqui quando a gente vai fazer uma coisa, umas querem horta, outras querem uma criação de galinha, outras querem negócio de queijo, outras já querem pra fazer rede, aí não decide, nunca chegam num acordo certo, cada qual quer uma coisa… (1, 5)

Observamos ainda outros organizadores instrumentais como o uso de tecnologias coletivas, a exploração de recursos naturais de domínio comum etc. De uma maneira geral, pode-se concluir que os organizadores instrumentais dependem do nível de informação e racionalidade das comunidades envolvidas; quanto mais claros e compreensíveis forem os objetivos perseguidos; quanto mais exeqüíveis pareça ser o sucesso do empreendimento, mais esses organizadores têm força de mobilização, articulação e organização das populações envolvidas.

Organizadores Simbólicos

A lógica de formação das identidades sociais depende das trocas simbólicas que ocorrem em um determinado grupo social. Ao mesmo tempo é possível observar, por exemplo, que o nível de cooperação em uma comunidade tem uma correlação direta com as identidades associadas às origens históricas e a referências comuns nos planos ideológico, cultural e religioso, dando maior coesão e articulação coletiva para definir e atingir objetivos comuns ou complementares.

Entre esses organizadores simbólicos remarcamos a existência de Organizadores Históricos que se constituem como uma das principais referências da formação e sustentabilidade dos grupos e sub-grupos comunitários, com sentimentos de inclusão social. Relações de parentescos, compadrio e vizinhança, envolvendo famílias com muitos anos de conhecimento, interesses comuns, solidariedade e canais privilegiados de comunicação.

O reconhecimento desses organizadores tem levado os movimentos sociais a utilizar símbolos que possam representar identidades coletivas como bandeiras, palavras de ordem, histórias das lutas. O objetivo maior é constituir uma identidade comum que consolide a organização.

Eu vivia isoladamente num canto sem ser representado por ninguém, cada um por si e Deus por todos e aqui eu acho que mudou porque aqui é todos por um e um por todos, então isso dá muita força, muita força de vontade e lutar de um lado e de outro, a gente unido sempre consegue as coisa. (31,2)

Existem ainda Organizadores Ideológicos cuja função simbólica consiste em definir um pensamento comum que sirva para regular as relações sociais de maneira coerente. As pesquisas empíricas constatam a presença nas falas das comunidades com referências a valores éticos e programáticos dos movimentos sociais, divulgados em documentos. O próprio exemplo estóico do comportamento da militância ideologicamente identificada com os movimentos sociais e comprometida com a luta dos trabalhadores.

Aqui, como em outras situações, é preciso considerar que nem sempre a presença desses organizadores ocorre de maneira a reforçar a hegemonia dos movimentos sociais. No caso dos assentamentos da reforma agrária, por exemplo, observamos que, embora reconheçam e aceitem os valores programáticos dos movimentos sociais, sobretudo no que diz respeito à luta dos pobres por justiça social, subsistem referências ideológicas mais ligadas à religião e ao senso comum. Muitas das famílias assentadas têm ideologias conservadoras subsidiárias do pensamento das classes dominantes. Essa contradição entre as ideologias dos movimentos sociais e as posições mais conservadoras das famílias rurais é mediada na fase da luta pela terra, pela adesão incondicional motivada pelos organizadores instrumentais. À medida que se consolidam a posse da terra e os créditos que dependem do poder de pressão da organização coletiva, começam a surgir resistências a maiores integrações com os movimentos.

Os Organizadores Religiosos assim como os Organizadores Culturais, têm grande importância para as posturas coletivas das comunidades porque são referências historicamente consolidadas. Nas populações rurais, a tradição da ligação atávica com a terra, com o trabalho no campo. Entre os jovens a modernidade da vida cotidiana nas cidades, o lazer, os esportes, a relação com o tráfico são forças de congraçamento e identificação.

Observam-se ainda nas comunidades estudadas a existência de Organizadores Institucionais que aparecem na constituição de associações e outras entidades coletivas, muitas das quais exigidas pelos órgãos públicos como condição de acesso a recursos. Mesmo induzidas de fora, essas associações tem certa importância estratégica para o desenvolvimento dos projetos da comunidade: Disseram: “não, se vocês quiserem esse projeto, tem que fazer uma associação”. Aí fomos atrás, juntemos todo mundo, quem quer, quem não quer (1, 9).

Organizadores Imaginários

Depois dos organizadores instrumentais que se estruturam racionalmente em busca de objetivos de curto prazo e dos organizadores simbólicos, que operam na formação de referências coletivas de inclusão social, localizamos ainda um outro tipo de organizador diferenciado dos dois primeiros, particularmente por operar com base nas instâncias imaginárias, ou seja, no plano do inconsciente. Na análise do material empírico trabalhado identificamos três tipos de organizadores imaginários que respondiam a posturas coletivas de grande significado para a vida das comunidades.

Em primeiro lugar, surgem os Organizadores da Liderança mobilizando as projeções inconscientes dos membros da comunidade sobre um líder através da qual se constituem articulações coletivas. Os líderes são pessoas de dentro ou de fora da comunidade (de ONGs, dos movimentos sociais) com carisma e interlocução com os movimentos sociais e com as autoridades governamentais.

Ele [líder] trabalha bem, ele traz as coisas, corre atrás de projeto. Ele não pode saber de uma coisa que é boa pra gente que ele vai atrás, ele quer trazer, ele quer ver a coisa correr, (54; 3)

O reconhecimento do poder do líder, por ser uma pessoa diferenciada na comunidade, representa a projeção das fragilidades de cada um sobre essa figura poderosa (do líder). Constata-se assim uma identidade coletiva constituída a partir de mecanismos inconscientes que se caracterizam pela ambivalência em relação à liderança; ambivalência expressa em posturas e sentimentos de identificação, mas também de negação da identidade própria.

[líder] sempre tá lá, que ele é a pessoa que é mais desenrolada, tem mais estudo de que a gente e é uma pessoa bem educada, sabe? Pessoa que conhece mais do … da área. (21; 4)

O medo da gente, é isso, é dele pegar o dinheiro, dar o golpe e desaparecer, não vir mais aqui. (58,3)

Essa ambigüidade já é sinal de um outro organizador recorrente nas comunidades que é a luta contra o líder, um movimento inconsciente que resulta de uma forma de organização natural do coletivo para enfrentar o poder do líder. A organização da horda, sem o concurso das lideranças, contra as figuras de poder e autoridade, representa um movimento que parte do inconsciente e se expressa na ruptura com a ordem instituída e na busca de uma organização alternativa. Na linguagem psicanalítica que interpreta as expressões do inconsciente, esse movimento de ruptura caracteriza o enfretamento do complexo de Édipo e a organização da horda objetiva a morte simbólica do Pai.

Esse tipo de reação contra as figuras de autoridades (patrões, governo, lideranças) revela uma evolução na organização da comunidade, as pessoas tentando se entender como sujeitos, rompendo a dependência.

De qualquer maneira aqui era feito escravo. Dia de domingo, ia cortar cana, embola cana no cacete, ajeita a cana, encostava o carro e ia. Hoje, o cara vai se quiser, a gente trabalha 2 dias, 3 dias se quiser (60,7)

 (Falando do movimento social) Eles não davam valor ao nosso tipo de coisa, como era o nosso projeto, aí resolveram fundar uma outra associação e hoje tem as duas. (1, 9)

Essa busca de autonomia nem sempre é entendida pelos líderes como um estágio de desenvolvimento da comunidade, gerando reações negativas e tentativas de isolamento dos  resistentes: Tem movimento que não quer que a associação seja autônoma, quer que seja submissa a ele porque (risos) pode manipular alguém. (63; 3)

Considere-se que na maioria das vezes, por conta dessas reações, a luta pela autonomia se expressa de maneira caótica, oscilando entre a autonomia e a ruptura.

As pessoas têm o costume de querer as coisas de mão beijada, elas assim se viciaram em ter as coisas tudo na mão deles, assim eles não costumam dizer não ao presidente da associação; então ele tem que resolver todos os problemas (30,6)

Finalmente, o nível mais evoluído de organização das comunidades se expressa por organizadores imaginários que representam a constituição dos sujeitos coletivos, designados como Organizadores Grupais.  A comunidade supera sua fase edipiana de contestação passando a uma forma de organização mais centrada sobre o coletivo, como uma auto referência, que assume o controle e se apropria de sua história.

Embora se tenham poucos registros dessa fase de organização autônoma nas comunidades pesquisadas, pude constatar que em maior ou menor ênfase existem indicadores da emergência desse tipo de organizador. É o caso das rendeiras, dos tapeceiros, dos produtores e feirantes de produtos orgânicos, assim como dos grupos de jovens com referências culturais e esportivas. A auto-imagem comunitária é positiva, o associativismo é diferenciado da média, a autonomia das informações e das iniciativas internas é marcante.

Infelizmente, a pressão do tempo na luta contra a exclusão social e a miséria leva os movimentos sociais a privilegiar métodos de mobilização mais efetivos no curto prazo. A ênfase em metodologia diretivas e pregações doutrinárias se faz em detrimento da constituição de uma práxis que permita desenvolver uma consciência de si e um espírito crítico mais aguçado. Nessa lógica pode-se entender que quanto maiores e mais presentes são os movimentos sociais, maiores são as chances de sucesso de suas lutas, mas contraditoriamente menos autonomia terão as comunidades locais por eles coordenadas.

Temos discutido muito com as pessoas que nós não precisamos de líder, nós precisamos de grupo, se tiver um grupo organizado que sabe o que quer nós conseguimos ir bastante pra frente, se nós tiver um líder que vai querer ser um líder messiânico ou seja um líder político aí nós não conseguimos muita coisa. (30,6)

Apesar da desconfiança generalizada nas histórias e experiências associativas nas comunidades pesquisadas, foram observadas, em estágio latente, tendências à organização autônoma de pequenos grupos no interior dos assentamentos que, se apoiadas de maneira adequada, por metodologias não diretivas, poderiam frutificar em benefício do fortalecimento da organização dos assentamentos.

Aqui ninguém tem chefe, ninguém que manda aqui, nem aqui… o probrema aqui é um por todos e todos por um. (26; 4)

Como me referi, no início deste texto, é essa evolução que tira o ser humano e os grupos sociais da alienação para um estágio avançado de autonomia e que se conclui com a constituição e o desenvolvimento de sujeitos coletivos; é o elo que une Habermas, Gramsci, Castoriadis e Reich. É uma luta que vale a pena lutar nessa companhia.

 

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[1] GOHN, Maria Gloria. O papel dos conselhos gestores na gestão urbana. <www//168.96.200.17/ar/libros/urbano/gohn.pdf>

[2] Ver Max Pagès (1998) e sua análise do envolvimento emocional das massas no fenômeno revolucionário, como uma regressão criativa caracterizada entre suas diversas fases, por um movimento de contestação do poder instituído. Para esse autor, a contestação se expressa em forma de utopias de mudanças radicais e absolutas, sem que isso represente formas ordenadas de projetos racionais.

[3] IBGE. As Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil 2002 – Rio de Janeiro 2004

 

[4] Os textos em itálico são extratos do material empírico recolhido em entrevistas nos assentamentos da reforma agrária, com base nos quais foram elaboradas as análises das pesquisas. Guardamos a numeração no final de cada extrato de frase que informa o número de ordem da entrevista e ao número da página da entrevista de onde foi retirado. As entrevistas da pesquisa de saúde não foram aqui reportadas diante dos limites do tamanho do texto.

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O compromisso central da mobilização e formação de liderança é com a autonomia do sujeito; uma autonomia, que se diferencia, ao mesmo tempo, do individualismo descomprometido com o social e da alienação do sujeito sob as determinações das estruturas instituídas

- Aécio Gomes de Matos

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