Se, como disse Eric Hobsbwan, o século XX se encerrou com o desmonte da União Soviética, foi Michael Gorbachov quem virou a chave, redesenhou o mapa mundial, suspendeu a guerra fria e o equilíbrio do terror nuclear, e abriu caminho para a integração econômica global. De forma pacífica, e de dentro do próprio sistema, ele promoveu mudanças no regime político e na estrutura econômica do bloco soviético a partir de dois pilares bem conhecidos no mundo capitalista ocidental – democracia (glasnost) e mercado (perestroika) – combinação que deveria acabar com os resquícios da ditadura stalinista e tirar a economia soviética da estagnação. O regime autocrático e a economia dirigida pela burocracia estatal, que permitiram a industrialização acelerada das primeiras décadas do século, estavam esgotados e perdiam viabilidade na economia do conhecimento que emergia no final do século passado. Inibiam a inovação e a criatividade, geravam grande ineficiência econômica e alimentavam o mercado negro, a corrupção e a rede de privilégios.

A União Soviética não conseguia mais acompanhar a corrida armamentista e espacial, mesmo com a alocação de volumes crescentes de recursos que, por outro lado, sufocavam as finanças e faziam falta em outros setores da economia. Frente à pujança da economia capitalista ocidental, a União Soviética e os outros países do bloco amargavam estagnação econômica e atraso tecnológico.

No entendimento dos reformistas de Gorbachov, a democracia e o mercado poderiam oxigenar a sociedade e a economia da União Soviética e seus parceiros na Europa, reanimando a vida política e dinamizando a economia. Na verdade, desde os anos 60, na própria União Soviética e em alguns países do bloco soviético surgiram propostas de renovação do regime fechado e autocrático, com abertura política e introdução de elementos de mercado na economia. A Primavera de Praga, esmagada pelos tanques soviéticos em 1968, foi uma tentativa de promover abertura política e implementar as ideias reformistas do economista Ota Sik, como o relaxamento do controle de preços e a promoção de empresas privadas. A experiência foi sufocada, mas as condições de rigidez e estagnação persistiram, e as ideias reformistas germinaram.

Provavelmente, Gorbachov pretendia promover uma transição suave, que transformaria a União Soviética numa espécie de socialismo democrático e de mercado, parecido com a social-democracia escandinava. No entanto, a União Soviética simplesmente desmanchou porque o sistema estava sendo corroído por dentro, num processo acelerado de estagnação e fadiga de material. Gorbachov deu um empurrão que abriu uma primeira fissura nos alicerces apodrecidos de um modelo sem resiliência, desestruturando todo o edifício. As poderosas forças da sociedade, que estavam comprimidas pela ditadura, e a energia produtiva contida pelo estatismo soviético explodiram, fugiram do controle da burocracia e desencadearam um acelerado e desorganizado processo de desmonte, atingindo todo o bloco de países que gravitavam em torno da União Soviética.

Tudo indica que a liberalização política (glasnost) avançou muito mais rápido que a reestruturação econômica (perestroika), gerando insatisfação da sociedade com a instabilidade e a desorganização da economia. O que era previsível, na medida em que as mudanças no sistema econômico lidavam com a estrutura de organização rígida e estatizada, demandando maior tempo de maturação e provocando forte impacto redistributivo. De outra perspectiva, Gorbachov sintetizou a derrocada do seu projeto afirmando: “O velho sistema desabou antes que o novo começasse a funcionar”. Na direção contrária às pretensões dos reformistas, a forma caótica de reestruturação da economia e o jogo político pesado dos novos burocratas transformaram a Rússia num capitalismo oligárquico, plasmado na figura temerária de Vladimir Putin. O homem que antecipou o encerramento do século XX teve que assistir, no final da vida, ao renascimento do militarismo e das ideias expansionistas do tzarismo, às novas tensões internacionais associadas ao poderio nuclear, e ao isolamento diplomático e econômico da Rússia.

E, no entanto, todos os países que restam do chamado “socialismo real”, que combina ditadura burocrática com economia estatizada, estão diante do mesmo desafio da experiência fracassada de Gorbachov, cada vez mais necessária e complexa neste século. A China está promovendo há décadas um movimento semelhante à perestroika, com forte presença do capital privado e dinâmica de mercado, mas evitando qualquer fresta no sistema de poder do Partido Comunista que pudesse precipitar uma desorganização política e institucional. Tudo indica que os dirigentes de Cuba também estão convencidos da inevitabilidade de uma reestruturação econômica, com abertura do mercado, para superar a estagnação econômica e acabar com o mercado negro. As condições cubanas são bem mais delicadas que as da China, considerando a fragilidade da base econômica, a dependência externa e o bloqueio econômico dos Estados Unidos, fragilidade que se acentuou precisamente depois do desmonte da União Soviética.

Mais contido que os chineses, o governo cubano vem testando algumas pequenas reformas com abertura para o mercado, por enquanto concentrada no turismo, mas não pretende democratizar o sistema político de partido único. De alguma forma, estes países vão ter que lidar, no futuro imediato, com o duplo desafio de liberar o mercado e democratizar as instituições. A China já avançou bastante no primeiro, mas nenhum dos dois têm demonstrado a menor intenção de oferecer liberdades democráticas, permitir liberdade de imprensa e de organização, e abandonar o sistema de partido único. Por enquanto, a China parece mostrar que é possível abrir a economia e, ao mesmo tempo, manter o sistema autocrático, perestroika sem glasnost. Será?

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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