Luiz Sérgio Henriques

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Proverbialmente brasileiro, Deus parece ter nos abandonado ultimamente ou pelo menos ter se ausentado de forma mais ou menos constante desde 2013. O longo ciclo de crises, que desde então se sucedem umas às outras, encontrou governos estruturalmente incapazes de dar alguma resposta positiva ao duplo desafio de, partindo da realidade nacional e reforçando a coesão das suas partes, modernizá-la numa perspectiva internacional, aceitando de forma ativa e criadora os termos de um mundo interdependente e hiperconectado.

Dispensável, aqui, descrever o desarranjo em que nos vimos metidos com a tentativa de exumação do nacional-estatismo nos governos de Dilma Rousseff. Aquela tentativa não redundou só em grave crise fiscal do estado: se os pobres consolidaram um palmo de terra no orçamento público, com o Bolsa Família – absolutamente defensável nos seus propósitos, como é correto frisar –, os ricos firmaram e expandiram seus mais tradicionais latifúndios, modernizando-os, quando fosse o caso, à custa de gordos subsídios e créditos de pai para filho, arruinando as contas públicas. O mais grave, no entanto, é que, a par com o desastre fiscal, as condições sociais marcaram passo, as cidades tornaram-se inóspitas, a educação e a saúde pública regrediram.

Não era inevitável que a generalizada insatisfação com este estado de coisas, que começou a se evidenciar em junho de 2013 e não se deteve no segundo mandato de Dilma Rousseff, acabasse por se cristalizar segundo o que pretendia uma pequena, estridente e bizarra minoria que, naquelas manifestações, desfilava sob a bandeira de uma “intervenção militar constitucional”. O intervalo representado pelo governo Temer foi um ensaio, muitas vezes interrompido ou mal-sucedido, de realinhar o Brasil e o mundo, retirar a economia do seu estado letárgico e implementar reformas, como a da Previdência, há muito debatidas por todos os governos da redemocratização, inclusive os petistas. Um ensaio sem dúvida malogrado, que terminou sem responder ao desafio de saber se era possível construir a tal ponte para o futuro, cujos pilares seriam o novo papel da iniciativa privada no desenvolvimento nacional e a recomposição do centro político, em oposição aos emergentes grupos de extrema direita e ao petismo em séria crise de legitimidade.

A Providência Divina, entretanto, se já parecia falhar, nos abandonaria definitivamente em 2018 – sem que até o momento dê indícios de que tão cedo volte a nos abençoar. Uma coisa é um ensaio economicamente liberal, como o de Temer, que, convivendo plenamente com as instituições democráticas, está por definição aberto à participação ativa do conjunto das forças políticas e sociais, que assim podem condicioná-lo decisivamente inclusive a partir da oposição. Outra, inteiramente diferente, é a reunião num só bloco dirigente de forças díspares e internamente contraditórias. Não há muita coerência na associação entre o mercadismo radical de um Paulo Guedes – moldado doutrinariamente décadas atrás, quando se acreditava ser o governo invariavelmente o problema, e o mercado, a solução – e os valores conservadores ou, a bem dizer, francamente regressivos daqueles adeptos do “militarismo constitucional”. E a incoerência torna-se explosiva, a ponto de ameaçar a coesão do País e sua integração no mundo, se a arbitrar os conflitos e as incongruências daí decorrentes está um político de trajetória obscura, horizonte corporativo e escassa lealdade institucional.

Estavam assim as coisas, como era patente para qualquer brasileiro que, por exemplo, embarcasse num avião e avaliasse por si mesmo a imagem internacional do País e seu presidente. Chegou-se a dizer, deste último, que se tratava de um pária em matéria de direitos humanos, respeito ao meio ambiente e observância de normas básicas de bom costume – nem radares de trânsito escaparam ao individualismo selvagem que se queria promover. O soft power que em boa parte da nossa história caracterizou a projeção externa do estado e da nação brasileira, apesar da desigualdade obscena que nunca conseguimos ocultar, também se dissolvia sob golpes de truculência. E a ideia de um “Brasil acima de todos” – uma espécie de inconsciente rememoração daquele “über alles” de infausta memória – não resistia, como não pode resistir, a uma política de alinhamento automático menos com a grande democracia norte-americana do que com uma parte beligerante e facciosa dela, justamente a extrema direita trumpista que a tem colocado sob dura prova.

Mal paradas estavam as coisas – dizíamos –, e eis que sobrevém a grande crise da economia e das sociedades proveniente do mundo natural. Sintomas de má direção tivemos desde o princípio quando a tragédia anunciada se viu descartada ou diminuída com a noção irresponsável da “gripezinha”. Ou quando serviu de biombo para manifestações de uma geopolítica rasteira e despropositada com a ideia do “vírus chinês” propositadamente fabricado em laboratório para destruir a civilização ocidental e cristã. O despropósito, contudo, não se deteve no terreno nebuloso – e, no entanto, muitas vezes decisivo – das ideias e das concepções da vida. Um rei fraco faz fraca a forte gente, como sabemos, e no presente caso temos – bem mais do que um rei fraco – todo um grupo dirigente desconexo e “fora do lugar”, como mencionamos acima. Não há de ser o liberalismo démodé de Guedes e a tal agenda conservadora cristã a nos guiar no labirinto da crise imensa que se abate sobre nós.

Esta insuficiência constitutiva se desdobra em dois planos temporais. A curto prazo ela se mostra na incapacidade, até agora patente, de fazer funcionar uma verdadeira economia de guerra nas condições de uma pandemia cujo desenvolvimento está em aberto e requer monitoração constante e muitíssimo bem informada. Apelos desatinados em prol do retorno ao trabalho aqui não funcionam. O que se exige, ao contrário, é uma capacidade inédita de liderar, formular alianças e dirimir atritos em todos os níveis da república. Algumas instituições têm surpreendido o senso comum – mas não o bom senso – ao se mostrarem eficientes e produtivas, como o Congresso Nacional ou o STF. E governadores e prefeitos, em sua maioria, movem-se em geral com o dinamismo que deles se espera: os problemas, afinal, acumulam-se e vão se acumular sempre mais nas portas dos palácios estaduais e das prefeituras, com uma contundência à prova de jejuns e milagres providenciados por quem aprendeu a viver da manipulação de valores religiosos.

A longo prazo há ainda um segundo aspecto fundamental. Na posterior reconstrução do País – uma reconstrução concreta, determinada, que não se confunde com nenhuma espécie de ruptura constitucional –, esta movimentação de governadores e prefeitos desde logo aponta para uma redefinição do pacto federativo, descentralizando fortemente responsabilidades e capacidade tributária. “Mais Brasil, menos Brasília” – o slogan fantasioso que o atual grupo dirigente nacional lançou, sem nele acreditar minimamente, poderá assim descer do terreno da mistificação e tornar-se uma exigência generalizada da cidadania, e isto já agora, como tem apontado, entre outros, o economista José Roberto Affonso, com as questões prementes da área de saúde. Nesta linha, ao enfrentar precisamente estas questões, a federação pode ser recriada a partir de  baixo, o que seria de todo modo auspicioso apesar das dores do parto.

Longe de diminuir a importância do poder central, a transição para uma federação mais forte e, consequentemente, para um país mais flexível, articulado e capaz de enfrentar melhor futuras situações críticas, reforça-o: ao poder central, particularmente ao executivo, é que cabe a tarefa de coordenação do esforço de todos, respeitado o papel de síntese política próprio do Congresso Nacional e o de “errar por último” do STF, que definem uma sociedade dotada de fisionomia democrática num mundo fadado a laços cada vez mais intensos de interdependência e necessitado, por isso mesmo, de ter bons exemplos de arranjos nacionais solidários. Uma parte muito grande do impasse atual é que não estamos certos, bem antes pelo contrário, de ter um executivo em condições de liderar democraticamente a nova federação que pode se desenhar – um dux, de acordo com a tradição presidencialista, mas distante da tentação canhestra de transformar-se em duce. É o que nos faz também supor que, se Deus ainda for brasileiro, pode momentaneamente ter se ausentado para as esferas celestiais, deixando-nos a sós com nossos recursos, nossa imaginação e até, ai de nós, nossas humanas fraquezas.

P.S Artigo originalmente publicado na Revista Será?

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